28 outubro 2016

O Luto é a Coisa com Penas - Max Porter


E foi isto que ele disse:/ Ficarei até que não precises mais de mim.(...)/ Eu recostei-me para trás, resignado, e desejei que a minha mulher/ não tivesse morrido. Desejei não estar apavorado, caído num gigantesco/ abraço-pássaro no meio do corredor. Desejei não ter/ ficado obcecado com esta coisa justamente no momento / da maior tragédia da minha vida. (…)/ Olá, Corvo, disse eu. Que bom conhecer-te finalmente.*E ele foi-se./ Pela primeira vez em muitos dias, dormi.”

Tudo começa assim.
O eterno retorno a que estamos votados condena-nos à re-petição, ao re-gresso, à re-adaptação.
Uma presença incómoda, porém inevitável, exige atenção e resposta.
A Dor, que parecia afastada da mente e da alma, regressa e apresenta-se, maior, asas negras abertas, dominadoras.
O patriarca de uma família lançada no luto e na luta para dele sair incólume, reconforta-se no seu abraço, a sua chegada mera evidência infalível que apenas tardava.
Entre o eu natural do Corvo e o seu eu civilizado/ vai-se fazendo um intercâmbio fascinante e constante (…) Parece-me ser o intercâmbio exacto/ entre o luto e vida, então como/ agora. Teria muito a aprender com ele.”

Toma a forma de um corvo. Alucinação talvez. Placebo racional, lógico para um especialista na obra de Ted Hughes, famoso assombrado pela culpa devastadora da perda precoce da sua Sylvia. Também ele pai de um Corvo ficcional, onde cravou bem fundo toda a negritude e solidão que o possuiu, mascarada de poesia sublime e brutal, meta-ficção, recriação.  
Também os seus filhos, ainda infantes, pressentem a mudança súbita.
“(...)sabíamos/ que alguma coisa se passava. Sabíamos que não nos davam/ respostas directas quando perguntávamos «onde está a Mamã?»”.

O melhor livro que li este ano foi publicado originalmente em 2015 e tem um corvo por protagonista.
Escrever isto, ou dizê-lo, pode parecer lunático para quem não encontra o mínimo atractivo na face mais fantástica da literatura, mas basta uma leitura das primeiros páginas de O Luto é a Coisa com Penas (Elsinore, 2016) para perceber que nada poderia ser mais falso.
Para quem teve a felicidade de devorar a versão original, é refrescante constatar a presença activa de tradutores como Daniel Jonas, capaz de fazer o quase impossível e manter a integridade de uma obra singular, no seu uso quase plástico da linguagem e de toda a paleta de recursos disponibilizados pela bela língua de Shakespeare.
A temática é penosa, fantasma que nos assombra até ao fim e os efeitos perenes da realização da sua inevitabilidade.
Como corvos indomados e inteligentes, somos convidados a acompanhar o escritor e os seus narradores, enquanto se distraem e desvendam, estilhaçando a tradição e a crítica literária britânica, mas também os clássicos intocáveis e a abordagem de temáticas soturnas, como a perda, a performatividade e os rituais repetidos por mera conveniência e habituação nestes momentos transversais e omnipresentes.
"Sempre que me sento e passo a vista pelas minhas notas, o Corvo/ aparece no meu escritório (...) A maioria das vezes fica feliz por ficar enrodilhado/ em sossego na poltrona a ler, silvando. (...) Não tem tempo para romances. Só pega/ em livros de História para chamar estúpidos a grandes homens/ ou amaldiçoar a Igreja."

Na sua obra de estreia, Max Porter materializa esta saudável irresponsabilidade e irreverência na figura omnipresente do Corvo. Recusa a rigidez e solenidade obscura com que esta figura mítica foi outrora carregada, para lhe conferir traços antropomórficos de personalidade, sensibilidade e empatia. Aproveitando a inteligência que lhe corre no sangue, extrapola-a ao reino do quase psicanalítico.
o lugar estava pejado de luto profundo/ cada superfície Mãe morta, lápis de cor, trator, casaco,/ galocha, cobertos com uma película de pesar.”
Ao mesmo tempo, aproveita o longo caminho já percorrido e recupera o peso simbólico desta personagem, com claro destaque para a sua dimensão jocosa, de bobo destruidor de narrativas e verdades, sempre pronto a berrar, a plenos pulmões, as verdades mais inconvenientes, doa a quem doer.
Noutras versões sou um médico ou um fantasma. (…) Conseguimos fazer coisas/ que outras personagens não conseguem, como comer a mágoa/ desdar à luz segredos e travar batalhas dramáticas com a linguagem/ e com Deus. Eu era amigo, desculpa, deus ex machina, piada, sintoma,/ ficção, espectro, muleta, brinquedo, fantasma, mordaça, analista/ e ama-seca.”
Talvez inadvertidamente, baseia a estrutura da obra numa sucessão de fractais triangulares que se vão expandindo, o que apenas confere profundidade ao texto, sem interferir minimamente na sua acessibilidade.
Edward James Hughes, Ted para os amigos e a eternidade, é profusamente evocado, directa e indirectamente e, com ele, a “sua” Sylvia Plath e a escritora/poeta que, depois da trágica morte da sua esposa, o britânico redescobriu e promoveu no seu país natal: Emily Dickinson, (citada no título do livro e no poema que o introduz, ambos “profanados” pelo Corvo).
É deste triângulo, explorado à exaustão pela crítica literária (incluindo o próprio Porter e, com certeza, o Pai – novo triângulo, com Hughes no vértice superior), que se ergue esta história de reconstrução e reabilitação individual e familiar.
O Corvo anti-mitológico, torna-se realidade diária desta família que perde o Norte, e assume a tarefa de a tentar salvar ou, pelo menos, consolar estes três seres despedaçados. Pai e Meninos, gémeos, com personalidades complementares, formando juntos o triângulo equilátero da Unidade.
Tente considerar os três, num só (…) À esquerda, temos o pai. (…) A meio, eu próprio. (…) À direita, temos/ os meninos. Duas formas, embora um só vulto”
Também o texto em si se divide em três diferentes vozes: Meninos, Corvo e Pai - com todo o simbolismo associado à trindade, que aqui nos escusamos a relembrar. O Corvo é o intruso, mas isso pouco o apoquenta, porque tem uma missão a cumprir.
Uma oportunidade meiga para cuidar”.Tenho relutância em discutir o absurdo convosco,/ que nos perseguiram desde o começo dos tempos. De que serve/ um corvo diante de uma matilha de humanos pesarosos? (…) Mas preocupo-me, profundamente. Considero os humanos aborrecidos/ excepto no pesar. (…) As crianças/ sem mãe são puro corvo.”
A estrutura estende-se à estratégica divisão do livro. A Parte Um, “Uma Pincelada de Noite”, relata a chegada intempestiva do Corvo; a Parte Três “Licença Para Partir”, a(s) despedida(s) e a Parte Dois, “A Defesa do Ninho”, detalha as tentativas de avançar, centradas na casa e na unidade familiar, tornadas forte do general Corvo, rei e senhor, Mefistófoles e anjo da guarda, lançando um impositivo desassossego.
A memória e o tempo são propositadamente baralhados.
O Pai contava-nos histórias e as histórias mudavam/ quando o Pai mudava.”Era uma vez dois meninos/ que, de propósito, trocavam tudo a respeito/ do seu pai. Esquecer coisas relacionadas com a sua mãe/ fazia com que se sentissem melhor.”
O Corvo dá o mote e as crianças mordem a isca. Qualquer um dos narradores nos engana, como também se engana a si mesmo. Nada mais natural do que iludir a realidade, para também a dor lhe seguir o curso, dissimular as suas origens. Deste jogo de fugas, deriva a fragmentação e multiplicidade de registos (fábula, lenda, poesia, farsa, sátira...) sem que, em momento algum, se perca a fluidez e o apelo irresistível a qualquer leitor, independentemente da amplitude dos seus conhecimentos literários.
Um irmão estava placidamente sentado dentro/ dos pedaços do irmão e esforçava-se muito/ mas sentia-se revoltado. Sou eu. (…) Eu sou ambos os irmãos.”
Como reflexo intrínseco da existência e o passado desta família, também o livro se desintegra para, no final, se reencontrar na poesia dos gestos partilhados, no Amor puro que sobra quando tudo se desmorona.
Como todos os grandes clássicos, o centro de gravidade deste maravilhoso opúsculo é a emoção. De uma história eternamente repetida, que poderia resvalar no sentimentalismo bacoco, saímos revitalizados e optimistas, graças a uma criatividade fulgurante, que casa na perfeição a audácia formal com a facilidade com que nos revemos em cada nuance de todo o elenco de personagens.
Neste livro raro e multifacetado, encontramos pequenos acenos a um amplo espectro de leitores, desde o mais cínico crítico literário, que encontra referências que só ele decifrará satisfeito, ao leitor mais curioso e casual.
Seguir em frente, como conceito, é para pessoas estúpidas, porque/ qualquer pessoa razoável sabe que o luto é um projecto a longo prazo./ Recuso-me a ser precipitado. Que nenhum homem atrase/ ou acelere ou componha a dor que nos caiba em sorte.”
O seu trunfo e triunfo é o claro menosprezo da banalização dos sentimentos que nos unem, em favor do saudável “desrespeito” pelo que de mais duro a vida nos reserva: o recomeço depois da hecatombe do nada, que se impõe perante as ausências definitivas e irreparáveis.
Indispensável é um eufemismo.
Sinto tantas saudades dela que me apetecia construir um monumento/ de trinta metros de altura à sua memória com as minhas mãos nuas.(...) Quão palpável é esta minha saudade. (…) A cidade inteira é a saudade que lhe tenho./ Arre, disse o Corvo, pareces um daqueles ímanes que se colam no frigorífico.”

(Texto publicado em DeusMeLivro.com)

25 outubro 2016

Um Copo de Cólera - Raduan Nassar


Aos nossos irmãos brasileiros, associamos velhos arquétipos, eternizados pelas novelas da Globo e pelas notícias que a imprensa deles veicula – malandros, relaxados, despreocupados, alegres, sensuais, descomplexados, abertos, irascíveis, com tudo para “dar certo” mas com tudo a “dar errado”, embora sempre de bem com a vida.
Seguindo uma tendência recente do mercado português, a literatura brasileira chegou em força. Infelizmente começou-se com pezinhos de lã, com consagrados e valores seguros, que os leitores não podem ser desafiados. Honra seja feita aos editores pioneiros, que há anos insistem na divulgação e publicação dos nomes emergentes no Brasil, como o malogrado André Jorge, editor da Cotovia, que durante anos apostou no talento literário do outro lado do oceano (a título de exemplo, foi o primeiro a publicar Tatiana Salem Levi em Portugal, quando ainda nem o Brasil se apercebera da sua qualidade) e se despediu da vida com a edição de dois belos livros do polémico e assertivo Marcelo Mirisola.
Mais recentemente, a Tinta da China tem tido papel preponderante nessa divulgação, com edições sucessivas de novos talentos e velhas glórias.
Pela Companhia das Letras (pertencente ao gigante conglomerado Penguin Random House), chega-nos “Um Copo de Cólera”, obra-prima de Raduan Nassar, mesmo a tempo da consagração com o Prémio Camões de 2016.
Escrita numa quinzena de 1970 e publicada em 1978, em plena ditadura militar (que durou até 1984), basta uma leitura para que seja clara a actualidade e acutilância de cada frase.
De dimensão reduzida e elevado poder dramático e poético, nestas páginas inspiradas encontramos uma novela (maior do que um conto, bem menor do que um romance) cuja escrita é um verdadeiro exercício de liberdade formal e criativa, perfeita no enquadramento de uma violenta discussão conjugal, onde voam impropérios, berros, silêncios, agressões da mais diversa índole, inclementes e com a frontalidade feroz que só os momentos extremos nos permitem atingir.
Mas nem só de cólera vive este opúsculo.
Todo o livro se centra na figura masculina, o narrador que é tudo menos omnisciente e até relativamente distanciado do seu relato.
Outrora um macho-alfa, este professor universitário (de filosofia talvez) é hoje uma sombra envelhecida e casmurra dos seus tempos áureos e, surpresa ou talvez não, passa grande parte da discussão fechado na sua mente, pesando prós e contras, as melhores estratégias de ataque e defesa, como se a vida se tratasse de um mero jogo do qual urge sair vitorioso.
A perspectiva do homem, que vive isolado do Mundo, na sua casa de campo longe da cidade, é  racional e racionalizada, transformando-o num cliché tão pesadamente ideológico e institucional que se aproxima da caricatura, metáfora do tudo o que de pior o machismo e paternalismo representavam no Brasil da época e, para além das aparências e atrás de portas fechadas, ainda representam em demasiados lares. As palavras que cospe são o prolongamento da sua mentalidade, mas sempre debitadas no que imaginamos ser o tom certo, pesadas para produzir o máximo de dano.
A mulher, jovem e idealista, jornalista segura de si e conhecedora do homem que encara, habilmente desmonta cada argumento, frustra os intentos do “opositor” e com descaramento, arrogância e pertinácia, mascara a mágoa que toda a discussão lhe causa.
O que começa como uma manhã tranquila, depois de uma noite de sexo tórrido, passa a inócua troca de palavras sobre um acontecimento aleatório, para, em pouco tempo, se elevar a verdadeiro choque de gerações, politizado e sem tréguas, onde mágoas latentes e silêncios passados tomam conta das emoções.
Uma troca de acusações no reino da sentimentalidade, rápida e irreversivelmente degrada-se em arena de debate político feroz, entre os estabelecidos e os que lutavam para se estabelecer, os amordaçados e os que coabitavam passivamente com uma ditadura militar, que condicionava as liberdades fundamentais. A micro-realidade de um casal é apresentada como projecção inevitável de uma macro-realidade nacional, que a afectava mortalmente.
Apenas no último capítulo (primeiro e último capítulo, de um total de sete, são homónimos. “Chegada” é o seu nome.) conhecemos a “voz” e a perspectiva feminina em discurso directo, num assomo genial de ironia do autor.
Ao leitor, demonstra com classe e subtileza que o chauvinismo nem sempre tem os efeitos pretendidos e deixa a narrativa em aberto, o que poderia dar uma excelente sequela, não fosse o detalhe anteriormente referido fechar estruturalmente a obra.
Uma estocada final no anacronismo da mentalidade brasileira vigente à época, disseminada também ao Ocidente, onde, ainda hoje, a violência nas relações é comummente aceite, como decorrência quase natural de uma relação consensual (v. qualquer estudo sobre a matéria).
Neste obra, tudo tresanda a desejo e sedução, mas também carne e sangue, suor e tesão, ataque e defesa, uma verdadeira batalha física, moral, intelectual, onde todos saem feridos e não há vencedores nem vencidos.
Talvez nós, leitores, vençamos no final, brindados com o uso singular e certeiro do português aberto e luminoso do outro lado do Atlântico que, graças aos deuses, foi mantido sem adaptações aos nossos vocábulos fechados e expressões cujo formalismo quase teatral seria totalmente descabido neste contexto.
Os dois protagonistas, nunca nomeados ou verdadeiramente descritos, amam-se e odeiam-se em igual medida.
Uma dose de despeito transborda a cada troca verbal, como se juntas formassem um copo de cólera em ebulição, onde não cabe nem mais um gota que o arrefeça.
São díspares as suas vivências e convicções políticas, sociológicas, vitais.
A cama já não chega para calar as palavras não ditas, para evitar a confrontação de duas gerações opostas de um Brasil em convulsão, constantemente adiado.
Mais de meio século depois, o que mudou?
A sensualidade latente, o poder de sedução e a manipulação mantêm-se intactos.
Os extremos tocam-se apenas para se ferirem e obterem vitórias temporárias.
É um Amor autofágico, que se acaba por não ter mais por onde arder (Saravá Tê).

Será também assim o Brasil, sempre ferido, em chamas? Terá que morrer para se reerguer? 

(Texto publicado no DeusMeLivro.com)

13 outubro 2016

Eu Sou Uma Antologia - 136 Autores Fictícios


Jerónimo Pizarro, aqui em co-autoria com Patricio Ferrari, com a ajuda da Tinta da China (que o edita desde que iniciou a sua pesquisa), veio trazer uma nova abordagem à obra de Fernando Pessoa, no sentido de uma dessacralização dos estudos pessoanos, já cristalizados e nem sempre satisfatórios ou sequer cientificamente inatacáveis, e da própria figura do poeta, visto como um semideus de genialidade e criatividade, contribuindo para um retrato mais fiel, contextualizado e integrado de um dos maiores cultores da nossa língua.
Como vem sendo hábito nestas edições, a grafia original é mantida, opção que não é consensualmente aceite, mas reveladora de um grande rigor histórico perante o espólio do poeta e de uma recusa em alterar os originais com qualquer adaptação ou alteração (excepto as necessárias para garantir a legibilidade, sempre devidamente assinaladas).
Eu sou uma anthologia./Screvo tam diversamente/que, pouca ou muita valia/Dos poemas, ninguém diria/ Que o poeta é um sòmente.”. Assim escrevia Pessoa, em Dezembro de 1932, e é daqui que Pizarro parte à descoberta do vasto universo heteronímico do lisboeta do Mundo.
Na introdução, Jerónimo Pizarro confessa que, dependendo dos critério de inclusão e exclusão, a lista de heterónimos poderá ser ainda maior. Na pesquisa de cerca de 30000 folhas do espólio pessoano, em busca dos chamados “vestígios ficcionais”, o investigador descobre a prática da “despersonalização dramática”, em que várias personagens/“almas” de Pessoa, se vão sucessivamente desdobrando e ramificando em outros nomes, outras vidas. Por exemplo, é de Alberto Caeiro que nasce um “Ricardo Reis latente” e de um Wyatt e um Crosse nasce um conjunto de personagens com o mesmo apelido.
O critério escolhido para inclusão nesta lista foi a “existência de um nexo com pelo menos um escrito (…) ou uma tarefa específica atribuída”. Para além disso, as personagens “são autoras (publicaram textos nas revistas Orpheu e Athena, por exemplo) e por vezes dialogam entre si “.
O que é verdadeiramente Pessoa, vulgarmente conhecido como o Pessoa ortónimo? Ou serão todos estes personagens, heterónimos e pseudónimos também ele, o mesmo, apenas desdobrado em “inúmeros espelhos”?
A resposta fica em aberto, como quase sempre que este gigantesco manancial literário é abordado. Mas o fascínio que emana desta obra reside precisamente na capacidade da sua escrita, quase um século depois da sua morte, ainda suscitar questões essenciais, quase filosóficas (e até místicas para alguns, incluíndo o próprio) sobre os contornos da obra literária e da autoria.
Nesta antologia, esses limites são diluídos, quer entre o criador e as suas criaturas, quer na relação entre as “criaturas”, que se entrecruzam, citam e desdobram, segundo instruções expressas de Pessoa (que nem sempre foram concretizadas), em cartas e escritos, cujos fac-símiles podemos ler e apreciar.
Surpreende (ou talvez não...) a diversidade de registos.
Para quem pensava que o universo heteronímico pessoano se ficava pelo género masculino, encontra aqui algumas excepções. Maria José, uma jovem de 19 anos, corcunda, confinada aos limites da seu quarto, apaixona-se pelo serralheiro que vê passar debaixo da sua janela e escreve-lhe uma carta de amor que sabe que nunca lhe chegará.
Para todas estas personagens, Pessoa criou assinaturas, por vezes até cartões de visita e profissionais, com os quais enviava e recebia correio.
Encarregou-as de escrever em diversas línguas (inglês, francês, alemão), efectuar trabalhos de tradução e comentário, textos críticos e até sessões mediúnicas, descritas com pormenor.
O detalhe que algumas destas construções ficcionais assumem torna-se a um tempo inacreditável, pelo aparente contraste entre si, e deslumbrante, por serem prova de que, numa mesma mente, cabem tantos quantos sejamos capazes de manter.
No final do Posfácio, numa demonstração de honestidade intelectual e reconhecimento do trabalho anteriormente desenvolvido por outros autores nesta área específica, Pizarro refere ainda personagens presentes noutras obras que procuraram o mesmo desiderato desta colectânea, explicando as razões da sua exclusão e deixando em aberto a investigação sempre inacabada dos muitos Eus pessoanos.
Um livro indispensável, não só para os estudiosos da matéria, como para qualquer bibliófilo, pela sua contribuição no alargamento fundamentado da nossa perspectiva sobre a literatura que molda (e moldará) tanto da nossa portugalidade e do cunho literário lusitano, dentro e fora das fronteiras físicas.
Na vida, como na literatura, a percepção que projectamos e recebemos é tudo. O resto é pura imaginação e conjectura. Desse contraste se alimentou Pessoa e as pessoas/espelhos que albergava. Passaremos gerações a tentar decifrá-las. Este é mais um tijolo dessa construção.

(Publicado na comunidadeculturaearte.com)


22 setembro 2016

A Julieta de Almodóvar


“Eu eduquei-te na mesma liberdade em que os meus pais me educaram (…). Nunca te quis falar disso, eras muito pequena para que te perturbasse com a amargura de minha culpa. Mesmo assim, percebeste-a (…) e, apesar de meu silêncio, acabei por te transmitir isso como um vírus”
Almodóvar e as mulheres.
A história desta relação confunde-se com a história do cinema. Leva já frutuosas décadas e granjeou-lhe um lugar de destaque, pela sensibilidade e coragem com que aborda o universo feminino, em toda a sua complexidade, beleza e fatalismo.
Conhecido por quebrar tabus e abordar temáticas essenciais, muito antes de serem moda, como as questões de género, neste filme o espanhol opta pela sobriedade e pela descrição, apontando subtilmente indícios, quase presságios, em detrimento de explicações grandiloquentes e demonstrações detalhadas de factos e sentimentos. O sussurro toma o lugar do murro no estômago.
Tal como nos velhos clássicos gregos, a acção começa in media res e todo o filme é uma detalhada analepse, em que retalhos do passado são descritos pela protagonista, na procura desesperada de recuperar um tempo que julga irremediavelmente perdido.



Encontramos Julieta (Emma Suárez – no presente - e Adriana Ugarte – no passado, duas interpretações de antologia) em casa, espaço estranhamente impessoal, repleta de tons brancos e cores mortas, algo raro nos cenários do espanhol. Prestes a mudar-se para Portugal, juntamente com o seu companheiro, malas prontas, escolhe livros para levar consigo.
Na decorrência de encontro fortuito com uma amiga de infância da filha, é-lhe revelado (a ela e a nós) que tem uma filha, Antía Feijóo, desconhecida do namorado, que mora na Suiça, casada e com três filhos.
Sucumbindo ao peso da ausência e da saudade, num ápice cancela a viagem, termina a sua relação e regressa ao prédio onde acompanhou a infância e adolescência da filha, subitamente esperançada num regresso, notícias, uma prova de vida.
Numa cena simbólica, junta os pedaços de uma foto de abraços sorridentes e felizes. Um momento apenas, como em todos os instantâneos familiares. Também ela se reconstrói, vertendo as recordações numa carta à filha, em que recupera a sua versão do passado e, com ela, a culpa, cujo peso insuportável a impede de avançar.
O inesperado reencontro consigo própria e com os laços indissolúveis da maternidade, reacende a saudade e a fé, 12 anos depois da dura e abrupta partida da filha, por motivações que nunca conseguiu descortinar (embora as pressinta).
Já em plena retrospectiva, deparámo-nos com uma excelente professora de estudos clássicos, activa, cativante. Ironicamente a sua própria vida é o exemplo vivo da quase completa inércia perante a sucessão dos acontecimentos, o completo inverso dos heróis que tão bem conhece.
Poderíamos pensar numa alusão de Almodóvar à Julieta de Shakespeare, mas também não é o caso.
A Julieta de Almodóvar afoga-se na culpa e no remorso e a eles se entrega, incapaz da força necessária para tentar que a vontade e o amor triunfem sobre a circunstância e o Destino.
Também a luta contra o Fado está totalmente ausente de toda a trama, embora alguns resquícios da estrutura trágica permaneçam na excelente personagem Marian, empregada de Xoan, marido de Julieta.
Papel curto mas marcante de uma das actrizes-fétiche de Almodóvar - Rossy de Palma - ao mesmo tempo que concentra em si o contraponto cómico para todo o dramatismo do filme, Marian assume também o papel outrora atribuído ao coro da tragédia, anunciando presságios, distúrbios na frágil placidez da vida em comum de um casal onde a comunicação não era abundante. Apenas no final se percebe como acaba por ser um verdadeiro deus-ex-machina, que vai alterar definitivamente toda a dinâmica familiar.



A mudança presente neste filme de Almodóvar, em termos de construção das personagens e do enredo, em muito se fica a dever à fidelidade e humildade que demonstra perante a obra Runway, da nobel da literatura Alice Munro, em especial aos três contos que têm como protagonista Juliet - "Chance", "Soon" e "Silence" – cada um deles descrevendo uma fase específica da sua vida: a juventude como professora, o regresso à casa dos pais, a maturidade e a dor de estar privada da presença da filha.
Assim que os leu pela primeira vez, Almodóvar comprou os direitos dos mesmos e planeou um filme nos locais descritos por Munro, em pleno Canada. Em entrevista ao El País, já este ano, revelava:
“Apesar de ter uma protagonista comum, os contos não eram consecutivos. Não era simples dar-lhes unidade, mas fascinaram-me tanto que comecei a escrever. A minha primeira ideia era fazer um filme em inglês e com atrizes de língua inglesa; queria rodar no Canadá, nos lugares de que falava Munro. Estava decidido. Durante a promoção de A Pele que Habito, fomos procurar locais em Vancouver e começaram os problemas. Fiquei arrasado. As paisagens reais eram tão desoladoras e tristes que vi claramente que não podia rodar ali, nem mesmo por alguns meses. Era muito deprimente. Então fomos ao Estado de Nova York em busca de uma mudança geográfica. Acabei o argumento e traduzira-no para o inglês com uma idiossincrasia americana. Também não me convencia. Por isso deixei numa gaveta e esqueci. Até que, há dois anos, Lola [García, sua ajudante pessoal] e Bárbara [Peiró, encarregada do departamento internacional de sua produtora] sugeriram-me que retomasse o projecto mas com uma nuance: que a história fosse em Espanha.”
Para não perturbar a descoberta da história, não nos alongaremos na análise comparativa, mas as semelhanças são inúmeras. O seu cinema adaptou-se na perfeição à escrita de Munro e não o inverso, algo inesperado para um criativo original como Almodóvar, mas que aqui resulta.
A fotografia é muito bela, com uma perfeita combinação de cores e planos de belo efeito, graças ao trabalho de Jean Claude Laurrieu. Pablo Iglesias, companheiro de longos anos, tece o tapete sonoro por onde desliza a acção, respeitando o fôlego das cenas, os silêncios e os ritmos.
O fascínio do filme reside precisamente no modo como a acção decorre sem grandes ânsias ou sobressaltos, centrada num aturado trabalho de composição de todo elenco e numa excepcional direcção de actores, em que a expressividade das feições e dos gestos habilmente se sobrepõe à verborreia que povoa tanto do cinema que hoje nos chega.
A contenção e subtileza que o realizador exibe nesta sua nova obra é exemplar e dela resulta um filme de emoções secas de lágrimas, centrado no âmago do desespero e do ressentimento, na rendição à evidência dos sentimentos maiores, que unem e destroem laços a seu tempo. Destacam-se as mulheres, as mães e as filhas, na sua essência, sem os artifícios do desenlace-surpresa, da música dramática na cena estratégica, da choradeira quase escatológica, de tão contagiante e perturbadora que se torna.
Almodóvar mudou de roupa, mas continua vintage.
Espanha escolheu Julieta como representante para os Óscares que se avizinham.
A ver, sem dúvida.


(Publicado na Comunidade Cultura e Arte)

30 agosto 2016

A partir de uma história verdadeira - Delphine de Vigan


(...) dois adolescentes que acabavam de saír de uma sessão de cinema sentaram-se à minha frente. Um deles estava a explicar ao outro que o filme que tinham visto (...) estava muito próximo da realidade: era quase tudo verdade. (...)- Já viste a quantidade de filmes que têm estreado e que são baseados em histórias verdadeiras? É caso para perguntar se os tipos não estão com falta de inspiração! (...)- Não é isso...é sobretudo porque o real tem tomates para ir muito mais longe.Foi aquela frase que me siderou (...): o real tinha tomates. (...) era fruto de uma força superior, muito mais criativa, audaciosa e imaginativa do que tudo o que conseguíssemos inventar. (...) uma imensa maquinação controlada por um demiurgo com um poder incontestável.” (pg. 298)                                                                                                     
a escrita é a destruição de toda a voz, de todo o ponto de origem. É aquele espaço neutro, compósito e oblíquo por onde foge o nosso sujeito, o negativo onde toda a identidade se perde, a começar precisamente pela do corpo que escreve. (...) desde o momento em que um facto é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é, finalmente livre de qualquer função que não o próprio exercício do símbolo, produz-se este desfasamento, a voz perde a sua origem, o autor começa a morrer, nasce a escrita.” (Roland Barthes “A Morte do Autor”)

Os thrillers são, ainda hoje, uma referência incontornável para cinéfilos e leitores.
Desde os seus primórdios, com cultores de qualidade inquestionável (principalmente na época áurea do film noir, da pulp fiction e do hard-boiled americanos), tornaram-se convincentes formas de entretenimento e até, de subreptício comentário social, formulando a equação cinemática perfeita de argumentos memoráveis, desempenhos interpretativos que fizeram carreiras, técnicas de iluminação e de câmara inovadoras, como o chiaroescuro, os planos picados e os planos suíços, e o desenho sempre dúbio das personagens.
Na Literatura, destacaram-se Raymond Chandler, Dashiell Hammett ou Agatha Christie, só para citar alguns. A narrativa caracteriza-se pela tensão e suspense constantes, com uma acção rápida e por vezes violenta e explícita. A tradição do anonimato dos seus autores era vulgar, com muitos dos escritores do estilo a optarem por pseudónimos.
Na 7ª Arte, Hitchcock trouxe o apogeu do género, revolucionando o cinema e a cultura popular e, com eles, a máquina promocional, o selecção de actores, a encenação e até o modo como o elenco, em especial os protagonistas, eram “motivados” a dar o melhor de si a cada “take”.
O britânico controlava tudo o que gravitava em torno do filme, desde a sua génese ao último segundo da projecção, influindo igualmente na sua apresentação mediática, por via do jogo com as perspectivas pré-estabelecidas, paradigmas e emoções mais primárias do espectador, induzindo a primeira verdadeira experiência cinematográfica imersiva de sucesso planetário da história do cinema.
O seu segredo, hoje amplamente divulgado? A manipulação exímia e por vezes perversa e sem escrúpulos. Mas os resultados são inegáveis e hoje é “Vertigo” que ocupa o topo do pódio dos melhores filmes da história do cinema, segundo a crítica mais respeitada.
“Porquê começar por aqui?”, pergunta o leitor ligeiramente baralhado.
Desde logo, porque em “A Partir de...”, o cariz cinemático e cénico é inegável, graças à sua divisão estrutural em três actos: sedução, depressão e traição. Enganadoramente linear, como uma tragédia ou uma série televisiva de três temporadas, este esqueleto onde assentam as formas do romance não é displicente ou casual, enquadrando eficazmente a trama e percurso das personagens e, em simultâneo, uma provocando uma disrupção no contexto narrativo deste género literário.
Por outro lado, a personagem principal não é L. ou Delphine, ou qualquer das sombras que gravita em torno da chama de sua relação.
Manipulação. Engano. Mentira. Disfarce. Camuflagem. Duplicidade. Desmultiplicação. Projecção. Eis o elenco principal do livro, onde apesar de pouco se inovar (quer no desenho das personagens, quer nas temáticas), somos constantemente interpelados e questionados, despertados do torpor induzido por uma narrativa de puro desgaste, presente em grande parte da obra.
Aproximamo-nos assim de Delphine, narradora homónima da autora, a que esta última atribui factos biográficos seus, para, em seguida, ficcionalmente os reciclar e devolver ao leitor, para que este vislumbre um feixe de luz no buraco negro em que a vida da sua anti-heroína se transforma, encaminhando-a para a anulação total.

Agora que exponho os factos, (...) tenho consciência de que revelam uma espécie de trama (...) a progressão lenta e obstinada de L., dia após dia delineando o seu objectivo.”

Com Delphine partilhamos a paranóia latente, a insegurança relapsa de uma infância e adolescência problemáticas, o cansaço, numa construção lenta, penosa e inexorável de uma tragédia (através dos clássicos indícios ou presságios estrategicamente colocados em momentos chave)  que se anuncia sem se concretizar.
O conceito de mise en abyme, é fulcral à sua construção e compreensão do romance e da sua protagonista, pelo que urge explaná-lo.
Na literatura, foi cunhado por André Gide nos anos vinte do século passado, embora a sua utilização fosse já bastante banal, e designa uma recorrência literária, em que se opera um efeito de infinita regressão e reprodução sucessiva de determinado motivo narrativo (p. ex. um evento ou uma recordação), que acaba por conferir uma nova camada de significado à obra. Usando o senso comum, é facilmente demonstrável. Imaginem um reflexo num espelho, que vos devolve a vossa imagem a segurar um espelho. A infinidade de reflexos que observam no espelho que seguram, surge graças ao efeito óptico de mise-en-abyme.
Exemplo acabado deste jogo de espelhos é a própria Delphine de Vigan e forma como coloca o leitor perante diversas realidades paralelas, complementares, reflexas, que convergem na obra.
O leitor é confrontado com uma Delphine múltipla. Por um lado, sabe que “na vida real” escreveu, quatro anos antes da acção descrita no livro, o grande sucesso da sua carreira Rien ne s´oppose à la nuit, em que detalha o suicídio da sua mãe e a sua vida familiar, tal como a narradora Delphine.
Por outro lado, o seu romance de estreia Jours sans faim (2001) foi publicado sob o pseudónimo de Lou Delvig, cujo nome Lou encontramos, por sua vez, no seu livro No et moi (2007), adaptado para cinema, com argumento escrito pela própria. É desta fluidez de identidades e realidades que a autora se serve para urdir este envolvente romance, apropriação ideal para esta época de informação instantânea, já que um aprofundamento da identidade pública da escritora apenas contribui para adensar a trama e, na mente do leitor, dissolver as fronteiras entre a realidade e a ficção.
Outro conceito central é o de duplo, doppelgänger, réplica exacta de alguém, imortalizada pela pena de imortais como Poe, Saramago ou Dostoievski e outros. No folclore tradicional, onde nasceu e se enraizou este mito, o duplo era frequentemente visto como o lado negro da pessoa e simbolizava má sorte e tragédia. A L., encaixa como uma luva este traje.
Escondida com o rabo de fora ao longo das quase 400 páginas do livro (que se lêem com uma voracidade de leão), como qualquer felina que se preze, encontramos a Literatura.
Na realidade, “A Partir de uma história verdadeira” é uma longa e sonora gargalhada sarcástica de Delphine de Vigan, direccionada ao leitor novo, aos fãs, ao mercado livreiro, à cultura contemporânea e, em particular, à francesa. O thriller, coberto de duplos sentidos e paráfrases, mascara habilmente uma reflexão irónica, realista e sedutora sobre a Literatura nas suas várias fases, com maior enfoque na sua criação.
Delphine (a narradora) e Delphine de Vigan, a escritora, afrontam as expectativas que hoje recaem sobre uma escritora criativa e bem-sucedida, cujo êxito se baseou numa fórmula que não pretende repetir.
L., nos seus longos monólogos doutrinadores, procura convertê-la à religião do mercado e ao seu mantra.

O leitor está-se nas tintas. Tens de encontrar (...) algo mais pessoal, algo que venha de ti, da tua história (...) Pois não resta nada das personagens de ficção, se não tiverem uma ligação ao real.”

O desejo que dela jorrem sucedâneos, que completem a torrente de Verdade inaugurada anteriormente, aprofundando o cariz mais revelatório e sensacionalista da sua escrita, esquecendo a inspiração e até a vontade da própria, é quase opressivo, como se também os livros estivessem já subjugados pela tirania da maioria, perdendo-se irremediavelmente o espaço reservado ao exercício da fantasia e da ilusão.
No seu lugar, banaliza-se o canibalismo e dissecação do autor, como ser humano para além da sua arte, por parte de um ávido exército de leitores, regularmente alimentado pelo marketing das editoras. O escritor, tal como a obra, torna-se um produto transacionável e perecível, que urge aproveitar enquanto não se gasta a bateria.

os escritores têm de concentrar-se naquilo que os distingue, voltar ao cerne da questão. E sabes qual é? (...) dar conta do real, dizer a verdade. (...) É isso que o leitor espera dos romancistas: que ponham as tripas de fora (...) E doravante o dever da literatura é fazer jogo limpo.”

Em entrevista de 2015 à Paris Match, a autora desvenda a questão essencial que subjaz a todo o romance:

A questão que sustenta o romance é a do verdadeiro. Este livro foi escrito em resposta à fascinação extrema da nossa sociedade pelo verdadeiro, “verdadeiro” na TV, “verdadeiro” no cinema, “verdadeiro” na escrita. Sou muito permeável a esta tendência pesada e profunda. Sou a primeira a ler as revistas “do social”, a interessar-me pelo que há de verdade numa história que me dizem ter sido inspirada em factos reais. (...) É remanescente da fascinação pelo “fait divers”, parece-me. E do culto da transparência.(...) Isto fascina-me e assusta-me simultaneamente. “ (nossa tradução)
   
A verdade a todo o custo, disseminada por toda a cultura como um vírus, surge como um obstáculo quase intransponível e incapacitante, encarnado por L., o anjo mau, o negativo da frágil Delphine.
Em tempos de crise, a literatura é a primeira vítima desta, tal como toda cultura. É encarada como mero escapismo, um acessório bonito para ter por perto na construção de um perfil social, público e aprovado, que hoje se quer com o Facebook sempre actualizado, a par dos tempos, mas também sintonizado com esse contínuo que vem sendo tecido desde que a memória foi baptizada como tal.
Se for fácil de consumir, como fast-food para a mente, tanto melhor. As citações costumam resultar bem, para este efeito. E as listas de tudo e mais alguma coisa.
Se for uma porta escancarada para a vida alheia, de preferência em linguagem de livro infantil e com factos imediatamente verificáveis em qualquer agregador de informação, ouro sobre azul. Uma capa bonita também convém, excelente para fazer pendant com a pulseira e o relógio...e etc., percebem a ideia.

verdade, era isso que as pessoas esperavam, o real garantido por um carimbo nos filmes e nos livros semelhante ao selo vermelho ou biológico dos produtos alimentares, um certificado de autenticidade. Pensava que as pessoas apenas pretendiam que as histórias as interessassem, as comovessem, as apaixonassem. Mas estava enganada. As pessoas queriam que aquilo tivesse tido lugar, algures, que aquilo pudesse ser confirmado. Queriam o vivido. As pessoas queriam identificar-se, sentir empatia, e para isso, precisavam de ter garantias em relação à mercadoria, exigiam um mínimo de traçabilidade. ”

Com experiência de sobra no meio cultural e consciente do seu tempo, Vigan serve-se da formalidade literária para elaborar a sua reflexão sobre a literatura, entre factos “verdadeiros” e a mais pura ficção, estilhaçando as estafadas fórmulas de causa-efeito, tão populares em quase todas as omnipresentes listas de livros mais vendidos, das quais, mantendo o seu caminho, acabou por fazer parte e colher os louros.
Em entrevista à belga La Libre, fala do registo pretendido na obra e no percurso para o obter:

No que respeita à autenticidade do gesto e à sinceridade que ele envolve, este livro é provavelmente o meu texto mais pessoal. Espero que ele mostre mais de perto o que é o processo de criação, aquilo que envolve, a origem da escrita. Podia escrever um ensaio, escolhi a forma romanesca. Para mim, partilhar isso com o leitor é extremamente sincero. Tenho a impressão de me ter exposto muito, mais do que noutros livros supostamente mais autobiográficos, e não tive a sensação de manipular o leitor. Para mim, o importante é o modo como contamos uma história: sem procurar agradar, nem estar onde nos esperam, nem satisfazer uma curiosidade, nem continuar o livro anterior. É traçar o seu próprio caminho, saber claramente o que devemos escrever. É de uma extrema intimidade que tal não corresponda a nenhuma necessidade exterior. Talvez alguns leitores gostassem que eu escrevesse sobre o meu pai, mas esse não era o meu trajecto.” (tradução nossa)

A ironia suprema começa ainda antes da primeira página do livro - no título.
O facto de partir do (falso) pressuposto de que se trata de uma “história verdadeira”, semeando factos autobiográficos (o marido, os filhos, a vida social, a “casa de férias”, o círculo de amigos...), que manipula e converte numa amálgama ficcional, confirma a paródia à sua anterior obra Rien ne s´oppose à la nuit, pesadamente autobiográfica, e ao próprio sistema editorial, já que, ao mesmo tempo que induz um sentido (forjado) de continuidade no registo autobiográfico (ou pelo menos semeia no leitor a dúvida sobre a veracidade dos factos), entra no território da ficção e com um livro distinto do anterior.
Poderia tratar-se de um compromisso da escritora, mas não é o caso.
Qualquer obra escrita, para que possa apelidar-se de literária, por muito que tente inovar, acaba por subsumir-se a um ou vários temas-base que a sustentam.
A Escrita, como verdadeira mundividência,  em todos os seus vícios e virtudes, assume aqui todo o protagonismo.
A Identidade (a pessoal e a que emana do que é escrito) e a importância do Tempo e da Memória na sua construção e desenvolvimento não lhe ficam atrás, embora aqui para efeitos mais ficcionais (estilísticos e lúdicos), do que propriamente substanciais.
Identidade, Memória e Tempo, nas variações a que são sujeitas ao longo de uma vida, são a base estrutural do thriller contido na obra. Uma história de apropriação, quase parasitismo, definitivamente possessão de Delphine por L..
O marido de Delphine, François, constata o óbvio:

Sabes, por vezes chego a pensar se não estarás possuída por alguém”.

A Memória e o Tempo entrecruzam-se e são o norte magnético onde converge toda a trama, principalmente quanto à narradora Delphine, personagem em busca da autenticidade artística e pessoal, quase sacrificando no processo a sua sanidade mental e física.
Os diários que mantém desde os doze anos até ao nascimento dos seus filhos gémeos, funcionam como referencial para o seu passado e inadvertida projecção no seu presente e futuro. Através deles, logrou fixar os eventos e complexidade de sentimentos de uma adolescência problemática que, de outro modo, se dissolveria com o passar do Tempo.
Por outro lado, essas memórias escritas permitem-lhe a conclusão do seu primeiro livro. Por intermédio da prática quotidiana da escrita, a sua arte evoluíu para a literariedade, sem qualquer preparação consciente.

Era um tesouro. Aqueles cadernos constituíam a minha memória. Continham inúmeros pormenores, histórias, situações que eu já esquecera. Continham as minhas esperanças, as minhas dúvidas, a minha dor. A minha cura. Continham aquilo de que eu me libertara para conseguir manter-me de pé (...) Aquilo que continua a atormentar-nos, sem nos darmos conta.”

O Tempo é cuidadosamente descrito, ou mantido na obscuridade, conforme o estado de espírito da protagonista e os próprios factos em causa. Evocar o passado é doloroso, porém necessário e quase terapêutico. No entanto, tais verdades nem sempre viabilizam a reminiscência e nestes casos de impotência, a impossibilidade de aguçar o engenho é declarada, qualquer que seja o grau de necessidade.
A percepção temporal de Delphine é vaga a espaços, embalada pela dor e pela incerteza que a Memória insiste em guardar.

Hoje ao tentar reconstituir esta conversa, sinto-me tentada a pensar que L. apalpava o terreno, avaliava a as suas hipóteses de conquista. Mas na realidade não estou certa de que as coisas tenham sido tão claras.”

A Identidade de Delphine é constantemente manipulada, até à regressão, desapropriação e desagregação , a partir do momento em que L. surge na sua vida.
Com os acontecimentos do final, e tantos eventos duvidosos ao longo do livro, coloca-se a dúvida, até ao leitor: será que L. existiu realmente, ou tratou-se apenas de um mecanismo mental inadvertidamente criado pela protagonista para ultrapassar o seu bloqueio criativo? Bipolaridade por bloqueio criativo?

(...) durante muito tempo acreditei que “emotivo” tinha algo a ver com a quantidade de vocabulário que um individuo possuía: eu era uma menina e-mot-iva (jogo de palavras com (...) “émotif” (emotivo) e “mot” (palavra). (N. da T.))”, ou seja, a quem faltavam as palavras (...) Julguei por isso que para viver em sociedade era preciso dispor de palavras, não hesitar em multiplicá-las (...). O vocabulário assim adquirido iria pouco a pouco criando uma carapaça (...) que me permitiria andar pelo mundo, alerta e confiante.”

Como todos nós, em determinada altura da nossa vida, também Delphine desenhou a sua personalidade por forma a subtrair ao olhar alheio os seus pontos fracos. A timidez e insegurança crónicas da infância e puberdade, entretanto dissipadas pela socialização, pelos seus processos defensivos e pela criação literária, tomam-na de forma avassaladora após conhecer L., reduzindo-a a um quase espectro.
L., Elle, Ela em francês, inicialmente o negativo de Delphine, paulatina e literalmente, inverte os papéis, chegando uma fase em que a protagonista confessa:

...em breve, de mim restará apenas uma pele morta, ressequida, um invólucro vazio.”.

Apropriadamente, era escritora-fantasma. O seu modus operandi consistia em conviver com o objecto da sua obra durante longos períodos, até se dissolver no seu quotidiano e, assim, obter as informações e peculiaridades necessárias à criação de um registo convincentemente íntimo e verdadeiro do “autor”. Escusado será referir que era exímia no sua tarefa.
Em trabalho para o seu objectivo bastante literário, que persegue tenazmente, não olha a meios para atingir o seu objectivo final.
Mais do que um artifício para construção do enredo, o “mise en abyme” é uma forma inteligente de incluir diferentes estilos literários no texto, e a sua inexistência, inutilizaria toda funcionalidade e pertinência de muitos dos trechos essenciais da obra. 
O leitor é conduzido numa descida lenta e irreversível à submissão absoluta de uma mulher a outra. Simultaneamente, a sua paciência, resiliência e expectativas, vão sendo testadas e demolidas, emulando, numa dimensão “real”, a desintegração do Eu de Delphine e a sua metódica e infalível apropriação por L..
A impotência é quase palpável, ao testemunharmos os constantes pensamentos e actos conciliatórios de Delphine face ao comportamento progressivamente incompreensível e agressivo de L., como quem assiste ao arder do rastilho de uma bomba impossível de despoletar.

Sentia o seu olhar indignado, apontado para mim como uma arma. Comecei a sentir-me culpada de uma coisa que ainda não existia (...) não fazia sentido nenhum.”

Nesta dialéctica doentia, é perceptível uma pesquisa aturada na psicanálise e psicologia por parte da autora, e um cuidado extremo na construção das personagens, para que a cada acto corresponda uma consequência lógica e não se quebre, pela inverosimilhança, a adesão do leitor a este jogo de submissão.
A experiência na escrita de argumentos cinematográficos é aqui bastante útil e óbvia, contribuindo para conferir particular acuidade e tensão a cada diálogo e silêncio entre as protagonistas.
L., como a consciência da narradora Delphine, antítese de tudo o que a Escrita representa para si, personificação da “anti-literatura”, relembra-lhe, até à derradeira página, os passos para o sucesso literário garantido, defendendo intransigentemente a “verdade” e pugnando para que ela prevaleça na sua escrita. No final, vence. Ou será que não?
Numa das trocas de argumentos mais acesas do livro, L. e Delphine debatem prós e contras para as suas posições sobre a literatura.

Os leitores (...) esperam mais da literatura (...): esperam o Verdadeiro, o autêntico, querem que lhes contem a vida, estás a perceber? (...)- É assim tão importante que a vida que se conta nos livros seja verdadeira ou falsa?- Sim, é importante. É importante que sejam verdadeiros.- Mas como podem saber? As pessoas, como dizes, talvez precisem apenas que soe bem. Aliás, talvez seja esse o mistério da escrita: soa bem ou não soa. Julgo que as pessoas sabem que aquilo que escrevemos nunca nos é totalmente estranho. Sabem que há sempre um fio, um motivo, uma falha, que nos liga ao texto. E aceitam que substituamos, que condensemos, que desviemos, que alteremos. E que inventemos.”

Assistimos ao confronto entre duas mundividências literárias, diametralmente opostas: a literatura-ficção e a literatura-verdade.
A literatura-ficção, representada pela narradora Delphine, em que o Real é trabalhado, interpretado e reescrito, até ao grau de literariedade necessário para poder ser considerada distinta de qualquer mero relato de actos e pensamentos pessoais do quotidiano. Apesar de a defender acerrimamente, Delphine acaba por ceder, perto do final, ao tentar o clássico “virar o feitiço contra o feiticeiro”, desajeitadamente cedendo à cilada de tentar apropriar-se da biografia que L. lhe vai revelando.

 “-Mas não há uma verdade. A verdade não existe. (...) Mas começamos a suprimir, estender, apertar, tapar os buracos, estamos na ficção. Andava à procura da verdade, sim (...) Mas toda a escrita é um romance. A narrativa é uma ilusão. Não existe. Nenhum livro deveria ser autorizado a ter essa menção impressa”

A literatura-verdade, hoje tão em voga, onde o marketing e uma série de alusões à vida do escritor sacralizam o livro, elevam-no a um patamar de maior pureza perante o leitor, por contarem em si o autor.

Não me refiro ao resultado. Falo da intenção, do impulso. A escrita deve ser a procura de uma verdade, caso contrário não é nada. (...) A única escrita que existe é a escrita de si. O resto não interessa.”

O resultado deste embate talhado por Delphine de Vigan, é uma obra híbrida, que prova que que o livro, qualquer que seja o autor, a circunstância que relata ou em que foi elaborado, não passa de um pretexto para envolver o leitor numa realidade alheia à sua e com essa farsa, dissimular o escritor com o traje que melhor lhe convier.
Ganha quem lê, com a diversidade que recebe, e o autor, que vê a sua intimidade reservada à criação e ao deleite dos pequenos nadas que apenas a si dizem respeito.
Por mais contraditório que possa parecer, em “A Partir de Uma História Verdadeira”, a literatura surge resgatada como o derradeiro reduto de intimidade, numa época em que quase toda a esfera privada (mesmo a dessa espécie em vias de extinção que são os escritores) se torna pública, global e partilhada.
Este livro é a demonstração cabal da personalidade e originalidade que o autor ainda pode imprimir na sua obra, mesmo quando imerso na ficção e no seu mundo interior.

 “- Estamo-nos nas tintas para essa verdade (...)/
- Não, não estamos. As pessoas sabem-no, sentem-no. Eu sei-o, quando leio um livro. (...)- Não achas que consegues senti-lo, como dizes, porque já o sabes? Porque tiveram o cuidado de informar-te de alguma forma que se tratava de uma história verdadeira, ou “inspirada em factos reais” ou «muito autobiográfica», e que essa simples  etiqueta bastou para despertar em ti (...) um tipo de curiosidade que todos temos (...) pelos episódios do quotidiano? Mas sabes, não estou certa de que o real seja suficiente. O real, se é que existe, (...) precisa de ser descarnado, transformado, interpretado. Sem um olhar, um ponto de vista, é uma grande seca (...) é um total ansiogénico. E esse trabalho é sempre uma forma de ficção.”

Com um simples asterisco, repetido no início de cada capítulo e no final do livro (cujo significado percebemos finalmente por volta da pg. 230), e com a surpresa final, novamente muito literária, Delphine de Vigan revela-se a verdadeira bonecreira, fabricando um “livro fantasma” sobre ela própria, a sua vida, o ofício da escrita, uma verdadeira e envolvente ficção (que cumpre o objectivo da própria narradora homónima, embora só o leitor, omnisciente graças aos apartes da narradora, o saiba).
O derradeiro mise-en-abime literário é completado pelo leitor, que interpretará o livro dentro do livro dentro do livro, num ciclo interminável de alternância, para no final ser novamente uno.
Chegados à última página, percebemos onde fomos conduzidos, sem que para tal fossemos vítimas de qualquer truque ou engano. Delphine de Vigan, apesar de jogar de acordo com as regras impostas pelo sistema editorial, cumpre o seu plano de escrever ficção e é bafejada pelo sucesso e reconhecimento merecidos. O Goncourt e o Renaudault que juntou ao seu palmarés falam por si. Pela voz da sua narradora, deixa-nos uma mensagem clara no final do livro.

- Na verdade, Léa gostava de saber se é sincera. Por vezes, ao ler o seu livro, ela teve dúvidas (...) Aquilo que conta é mesmo verdadeiro? (...)Por um segundo, tive vontade de responder a Léa que tinha acertado em cheio. Claro que não, era evidente que tudo aquilo era mera efabulação, nada daquilo que eu contara, sucedera (...)Em seguida, tentei explicar-lhe (...) como o real me parecia inacessível.- Mesmo que aquilo tenha sucedido (...), não deixa de ser uma história que estamos a contar. Contamo-la a nós próprios. (...) Somos todos voyeurs”...Não acredito no tom de verdade (...) Estou absolutamente convencida de que vós, nós, leitores, tantos quantos somos, podíamos ser completamente enganados por um livro que se deixasse ler como verdade e que não fosse senão uma invenção, um disfarce, pura imaginação. Penso que qualquer autor minimamente hábil pode fazê-lo. Multiplicar os efeitos do real para fazer com que acreditem que aquilo que está a contar aconteceu. E lanço o desafio (...) de distinguir o verdadeiro do falso. Aliás, podia ser um projecto literário escrever um livro inteiro para ser lido como uma “história verdadeira”(...) pretensamente “baseado em factos reais”, mas onde tudo, ou quase tudo, fosse inventado.”- Seria esse livro menos sincero do que qualquer outro, não estou certa disso. Talvez fosse, pelo contrário, de uma grande sinceridade.”

(Publicado no blog DeusMeLivro)