“(...) dois adolescentes que acabavam de saír de uma sessão
de cinema sentaram-se à minha frente. Um deles estava a explicar ao outro que o
filme que tinham visto (...) estava muito próximo da realidade: era quase tudo
verdade. (...)- Já viste a quantidade de filmes que têm estreado e que
são baseados em histórias verdadeiras? É caso para perguntar se os tipos não
estão com falta de inspiração! (...)- Não é isso...é sobretudo porque o real tem tomates para
ir muito mais longe.Foi aquela frase que me siderou (...): o real tinha
tomates. (...) era fruto de uma força superior, muito mais criativa, audaciosa
e imaginativa do que tudo o que conseguíssemos inventar. (...) uma imensa
maquinação controlada por um demiurgo com um poder incontestável.” (pg. 298)
“a escrita é a destruição de toda a voz, de todo o ponto de
origem. É aquele espaço neutro, compósito e oblíquo por onde foge o nosso
sujeito, o negativo onde toda a identidade se perde, a começar precisamente
pela do corpo que escreve. (...) desde o momento em que um facto é contado,
para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é,
finalmente livre de qualquer função que não o próprio exercício do símbolo,
produz-se este desfasamento, a voz perde a sua origem, o autor começa a morrer,
nasce a escrita.” (Roland Barthes “A Morte do Autor”)
Os
thrillers são, ainda hoje, uma referência incontornável para cinéfilos e
leitores.
Desde
os seus primórdios, com cultores de qualidade inquestionável (principalmente na
época áurea do film noir, da pulp fiction e do hard-boiled
americanos), tornaram-se convincentes formas de entretenimento e até, de
subreptício comentário social, formulando a equação cinemática perfeita de
argumentos memoráveis, desempenhos interpretativos que fizeram carreiras,
técnicas de iluminação e de câmara inovadoras, como o chiaroescuro, os planos
picados e os planos suíços, e o desenho sempre dúbio das personagens.
Na
Literatura, destacaram-se Raymond Chandler, Dashiell Hammett ou Agatha
Christie, só para citar alguns. A narrativa caracteriza-se pela tensão e
suspense constantes, com uma acção rápida e por vezes violenta e explícita. A
tradição do anonimato dos seus autores era vulgar, com muitos dos escritores do
estilo a optarem por pseudónimos.
Na
7ª Arte, Hitchcock trouxe o apogeu do género, revolucionando o cinema e a
cultura popular e, com eles, a máquina promocional, o selecção de actores, a
encenação e até o modo como o elenco, em especial os protagonistas, eram
“motivados” a dar o melhor de si a cada “take”.
O
britânico controlava tudo o que gravitava em torno do filme, desde a sua génese
ao último segundo da projecção, influindo igualmente na sua apresentação
mediática, por via do jogo com as perspectivas pré-estabelecidas, paradigmas e
emoções mais primárias do espectador, induzindo a primeira verdadeira
experiência cinematográfica imersiva de sucesso planetário da história do
cinema.
O
seu segredo, hoje amplamente divulgado? A manipulação exímia e por vezes
perversa e sem escrúpulos. Mas os resultados são inegáveis e hoje é “Vertigo” que ocupa o topo do pódio dos melhores filmes da história do cinema,
segundo a crítica mais respeitada.
“Porquê
começar por aqui?”, pergunta o leitor ligeiramente baralhado.
Desde
logo, porque em “A Partir de...”, o cariz cinemático e cénico é inegável,
graças à sua divisão estrutural em três actos: sedução, depressão e traição.
Enganadoramente linear, como uma tragédia ou uma série televisiva de três
temporadas, este esqueleto onde assentam as formas do romance não é displicente
ou casual, enquadrando eficazmente a trama e percurso das personagens e, em
simultâneo, uma provocando uma disrupção no contexto narrativo deste género
literário.
Por
outro lado, a personagem principal não é L. ou Delphine, ou qualquer das
sombras que gravita em torno da chama de sua relação.
Manipulação.
Engano. Mentira. Disfarce. Camuflagem. Duplicidade. Desmultiplicação.
Projecção. Eis o elenco principal do livro, onde apesar de pouco se inovar
(quer no desenho das personagens, quer nas temáticas), somos constantemente
interpelados e questionados, despertados do torpor induzido por uma narrativa
de puro desgaste, presente em grande parte da obra.
Aproximamo-nos
assim de Delphine, narradora homónima da autora, a que esta última atribui
factos biográficos seus, para, em seguida, ficcionalmente os reciclar e
devolver ao leitor, para que este vislumbre um feixe de luz no buraco negro em
que a vida da sua anti-heroína se transforma, encaminhando-a para a anulação
total.
“Agora que exponho os factos, (...) tenho consciência de
que revelam uma espécie de trama (...) a progressão lenta e obstinada de L.,
dia após dia delineando o seu objectivo.”
Com
Delphine partilhamos a paranóia latente, a insegurança relapsa de uma infância
e adolescência problemáticas, o cansaço, numa construção lenta, penosa e
inexorável de uma tragédia (através dos clássicos indícios ou presságios
estrategicamente colocados em momentos chave) que se anuncia sem se
concretizar.
O
conceito de mise en abyme, é fulcral à sua construção e
compreensão do romance e da sua protagonista, pelo que urge explaná-lo.
Na
literatura, foi cunhado por André Gide nos anos vinte do século passado, embora
a sua utilização fosse já bastante banal, e designa uma recorrência literária,
em que se opera um efeito de infinita regressão e reprodução sucessiva de
determinado motivo narrativo (p. ex. um evento ou uma recordação), que acaba
por conferir uma nova camada de significado à obra. Usando o senso comum, é
facilmente demonstrável. Imaginem um reflexo num espelho, que vos devolve a vossa
imagem a segurar um espelho. A infinidade de reflexos que observam no espelho
que seguram, surge graças ao efeito óptico de mise-en-abyme.
Exemplo
acabado deste jogo de espelhos é a própria Delphine de Vigan e forma como
coloca o leitor perante diversas realidades paralelas, complementares,
reflexas, que convergem na obra.
O
leitor é confrontado com uma Delphine múltipla. Por um lado, sabe que “na vida
real” escreveu, quatro anos antes da acção descrita no livro, o grande sucesso
da sua carreira Rien ne s´oppose à la nuit, em que detalha o suicídio da
sua mãe e a sua vida familiar, tal como a narradora Delphine.
Por
outro lado, o seu romance de estreia Jours sans faim (2001) foi publicado sob o pseudónimo de
Lou Delvig, cujo nome Lou encontramos, por sua vez, no seu livro No et moi
(2007), adaptado para cinema, com argumento escrito pela própria. É desta
fluidez de identidades e realidades que a autora se serve para urdir este
envolvente romance, apropriação ideal para esta época de informação
instantânea, já que um aprofundamento da identidade pública da escritora apenas
contribui para adensar a trama e, na mente do leitor, dissolver as fronteiras
entre a realidade e a ficção.
Outro
conceito central é o de duplo, doppelgänger, réplica exacta de
alguém, imortalizada pela pena de imortais como Poe, Saramago ou Dostoievski e
outros. No folclore tradicional, onde nasceu e se enraizou este mito, o duplo
era frequentemente visto como o lado negro da pessoa e simbolizava má sorte e
tragédia. A L., encaixa como uma luva este traje.
Escondida
com o rabo de fora ao longo das quase 400 páginas do livro (que se lêem com uma
voracidade de leão), como qualquer felina que se preze, encontramos a Literatura.
Na
realidade, “A Partir de uma história verdadeira” é uma longa e sonora
gargalhada sarcástica de Delphine de Vigan, direccionada ao leitor novo, aos
fãs, ao mercado livreiro, à cultura contemporânea e, em particular, à francesa.
O thriller, coberto de duplos sentidos e paráfrases, mascara habilmente uma
reflexão irónica, realista e sedutora sobre a Literatura nas suas várias fases,
com maior enfoque na sua criação.
Delphine
(a narradora) e Delphine de Vigan, a escritora, afrontam as expectativas que
hoje recaem sobre uma escritora criativa e bem-sucedida, cujo êxito se baseou
numa fórmula que não pretende repetir.
L.,
nos seus longos monólogos doutrinadores, procura convertê-la à religião do
mercado e ao seu mantra.
“O leitor está-se nas tintas. Tens de encontrar (...) algo
mais pessoal, algo que venha de ti, da tua história (...) Pois não resta nada
das personagens de ficção, se não tiverem uma ligação ao real.”
O
desejo que dela jorrem sucedâneos, que completem a torrente de Verdade
inaugurada anteriormente, aprofundando o cariz mais revelatório e sensacionalista
da sua escrita, esquecendo a inspiração e até a vontade da própria, é quase
opressivo, como se também os livros estivessem já subjugados pela tirania da
maioria, perdendo-se irremediavelmente o espaço reservado ao exercício da
fantasia e da ilusão.
No
seu lugar, banaliza-se o canibalismo e dissecação do autor, como ser humano
para além da sua arte, por parte de um ávido exército de leitores, regularmente
alimentado pelo marketing das editoras. O escritor, tal como a obra,
torna-se um produto transacionável e perecível, que urge aproveitar enquanto
não se gasta a bateria.
“os escritores têm de concentrar-se naquilo que os
distingue, voltar ao cerne da questão. E sabes qual é? (...) dar conta do real,
dizer a verdade. (...) É isso que o leitor espera dos romancistas: que ponham
as tripas de fora (...) E doravante o dever da literatura é fazer jogo limpo.”
Em entrevista de 2015 à Paris Match, a autora desvenda
a questão essencial que subjaz a todo o romance:
“A questão que sustenta o
romance é a do verdadeiro. Este livro foi escrito em resposta à
fascinação extrema da nossa sociedade pelo verdadeiro, “verdadeiro” na TV,
“verdadeiro” no cinema, “verdadeiro” na escrita. Sou muito permeável a esta
tendência pesada e profunda. Sou a primeira a ler as revistas “do social”, a
interessar-me pelo que há de verdade numa história que me dizem ter sido
inspirada em factos reais. (...) É remanescente da fascinação pelo “fait
divers”, parece-me. E do culto da transparência.(...) Isto fascina-me e
assusta-me simultaneamente. “ (nossa tradução)
A
verdade a todo o custo, disseminada por toda a cultura como um vírus, surge
como um obstáculo quase intransponível e incapacitante, encarnado por L., o
anjo mau, o negativo da frágil Delphine.
Em
tempos de crise, a literatura é a primeira vítima desta, tal como toda cultura.
É encarada como mero escapismo, um acessório bonito para ter por perto na
construção de um perfil social, público e aprovado, que hoje se quer com o
Facebook sempre actualizado, a par dos tempos, mas também sintonizado com esse
contínuo que vem sendo tecido desde que a memória foi baptizada como tal.
Se
for fácil de consumir, como fast-food para a mente, tanto melhor. As
citações costumam resultar bem, para este efeito. E as listas de tudo e mais
alguma coisa.
Se
for uma porta escancarada para a vida alheia, de preferência em linguagem de
livro infantil e com factos imediatamente verificáveis em qualquer agregador de
informação, ouro sobre azul. Uma capa bonita também convém, excelente para
fazer pendant com a pulseira e o relógio...e etc., percebem a ideia.
“verdade, era isso que as pessoas esperavam, o real
garantido por um carimbo nos filmes e nos livros semelhante ao selo vermelho ou
biológico dos produtos alimentares, um certificado de autenticidade. Pensava
que as pessoas apenas pretendiam que as histórias as interessassem, as
comovessem, as apaixonassem. Mas estava enganada. As pessoas queriam que aquilo
tivesse tido lugar, algures, que aquilo pudesse ser confirmado. Queriam o
vivido. As pessoas queriam identificar-se, sentir empatia, e para isso,
precisavam de ter garantias em relação à mercadoria, exigiam um mínimo de
traçabilidade. ”
Com
experiência de sobra no meio cultural e consciente do seu tempo, Vigan serve-se
da formalidade literária para elaborar a sua reflexão sobre a literatura, entre
factos “verdadeiros” e a mais pura ficção, estilhaçando as estafadas fórmulas
de causa-efeito, tão populares em quase todas as omnipresentes listas de livros
mais vendidos, das quais, mantendo o seu caminho, acabou por fazer parte e
colher os louros.
Em entrevista à belga La Libre, fala do registo
pretendido na obra e no percurso para o obter:
“No que respeita à
autenticidade do gesto e à sinceridade que ele envolve, este livro é
provavelmente o meu texto mais pessoal. Espero que ele mostre mais de perto o
que é o processo de criação, aquilo que envolve, a origem da escrita. Podia
escrever um ensaio, escolhi a forma romanesca. Para mim, partilhar isso com o
leitor é extremamente sincero. Tenho a impressão de me ter exposto muito, mais
do que noutros livros supostamente mais autobiográficos, e não tive a sensação
de manipular o leitor. Para mim, o importante é o modo como contamos uma
história: sem procurar agradar, nem estar onde nos esperam, nem satisfazer uma
curiosidade, nem continuar o livro anterior. É traçar o seu próprio caminho,
saber claramente o que devemos escrever. É de uma extrema intimidade que tal
não corresponda a nenhuma necessidade exterior. Talvez alguns leitores
gostassem que eu escrevesse sobre o meu pai, mas esse não era o meu trajecto.”
(tradução nossa)
A
ironia suprema começa ainda antes da primeira página do livro - no título.
O
facto de partir do (falso) pressuposto de que se trata de uma “história verdadeira”,
semeando factos autobiográficos (o marido, os filhos, a vida social, a “casa de
férias”, o círculo de amigos...), que manipula e converte numa amálgama
ficcional, confirma a paródia à sua anterior obra Rien ne s´oppose à la nuit,
pesadamente autobiográfica, e ao próprio sistema editorial, já que, ao mesmo
tempo que induz um sentido (forjado) de continuidade no registo autobiográfico
(ou pelo menos semeia no leitor a dúvida sobre a veracidade dos factos), entra
no território da ficção e com um livro distinto do anterior.
Poderia
tratar-se de um compromisso da escritora, mas não é o caso.
Qualquer
obra escrita, para que possa apelidar-se de literária, por muito que tente
inovar, acaba por subsumir-se a um ou vários temas-base que a sustentam.
A
Escrita, como verdadeira mundividência, em todos os seus vícios e
virtudes, assume aqui todo o protagonismo.
A
Identidade (a pessoal e a que emana do que é escrito) e a importância do
Tempo e da Memória na sua construção e desenvolvimento não lhe
ficam atrás, embora aqui para efeitos mais ficcionais (estilísticos e lúdicos),
do que propriamente substanciais.
Identidade,
Memória e Tempo, nas variações a que são sujeitas ao longo de uma vida, são
a base estrutural do thriller contido na obra. Uma história de
apropriação, quase parasitismo, definitivamente possessão de Delphine por L..
O
marido de Delphine, François, constata o óbvio:
“Sabes, por vezes chego a pensar se não estarás possuída
por alguém”.
A
Memória e o Tempo entrecruzam-se e são o norte magnético onde
converge toda a trama, principalmente quanto à narradora Delphine, personagem
em busca da autenticidade artística e pessoal, quase sacrificando no processo a
sua sanidade mental e física.
Os
diários que mantém desde os doze anos até ao nascimento dos seus filhos gémeos,
funcionam como referencial para o seu passado e inadvertida projecção no seu
presente e futuro. Através deles, logrou fixar os eventos e complexidade de
sentimentos de uma adolescência problemática que, de outro modo, se dissolveria
com o passar do Tempo.
Por
outro lado, essas memórias escritas permitem-lhe a conclusão do seu primeiro
livro. Por intermédio da prática quotidiana da escrita, a sua arte evoluíu para
a literariedade, sem qualquer preparação consciente.
“Era um tesouro. Aqueles cadernos constituíam a minha
memória. Continham inúmeros pormenores, histórias, situações que eu já
esquecera. Continham as minhas esperanças, as minhas dúvidas, a minha dor. A
minha cura. Continham aquilo de que eu me libertara para conseguir manter-me de
pé (...) Aquilo que continua a atormentar-nos, sem nos darmos conta.”
O
Tempo é cuidadosamente descrito, ou mantido na obscuridade, conforme o
estado de espírito da protagonista e os próprios factos em causa. Evocar o
passado é doloroso, porém necessário e quase terapêutico. No entanto, tais
verdades nem sempre viabilizam a reminiscência e nestes casos de impotência, a
impossibilidade de aguçar o engenho é declarada, qualquer que seja o grau de
necessidade.
A
percepção temporal de Delphine é vaga a espaços, embalada pela dor e pela
incerteza que a Memória insiste em guardar.
“Hoje ao tentar reconstituir esta conversa, sinto-me
tentada a pensar que L. apalpava o terreno, avaliava a as suas hipóteses de conquista.
Mas na realidade não estou certa de que as coisas tenham sido tão claras.”
A
Identidade de Delphine é constantemente manipulada, até à regressão,
desapropriação e desagregação , a partir do momento em que L. surge na sua
vida.
Com
os acontecimentos do final, e tantos eventos duvidosos ao longo do livro,
coloca-se a dúvida, até ao leitor: será que L. existiu realmente, ou tratou-se
apenas de um mecanismo mental inadvertidamente criado pela protagonista para
ultrapassar o seu bloqueio criativo? Bipolaridade por bloqueio criativo?
“(...) durante muito tempo acreditei que
“emotivo” tinha algo a ver com a quantidade de vocabulário que um individuo
possuía: eu era uma menina e-mot-iva (jogo de palavras com (...) “émotif”
(emotivo) e “mot” (palavra). (N. da T.))”, ou seja, a quem faltavam as palavras
(...) Julguei por isso que para viver em sociedade era preciso dispor de
palavras, não hesitar em multiplicá-las (...). O vocabulário assim adquirido
iria pouco a pouco criando uma carapaça (...) que me permitiria andar pelo
mundo, alerta e confiante.”
Como
todos nós, em determinada altura da nossa vida, também Delphine desenhou a sua
personalidade por forma a subtrair ao olhar alheio os seus pontos fracos. A
timidez e insegurança crónicas da infância e puberdade, entretanto dissipadas
pela socialização, pelos seus processos defensivos e pela criação literária,
tomam-na de forma avassaladora após conhecer L., reduzindo-a a um quase
espectro.
L.,
Elle, Ela em francês, inicialmente o negativo de Delphine, paulatina e
literalmente, inverte os papéis, chegando uma fase em que a protagonista
confessa:
“...em breve, de mim restará apenas uma pele morta,
ressequida, um invólucro vazio.”.
Apropriadamente,
era escritora-fantasma. O seu modus operandi consistia em conviver com o
objecto da sua obra durante longos períodos, até se dissolver no seu quotidiano
e, assim, obter as informações e peculiaridades necessárias à criação de um
registo convincentemente íntimo e verdadeiro do “autor”. Escusado será referir
que era exímia no sua tarefa.
Em
trabalho para o seu objectivo bastante literário, que persegue tenazmente, não
olha a meios para atingir o seu objectivo final.
Mais
do que um artifício para construção do enredo, o “mise en abyme”
é uma forma inteligente de incluir diferentes estilos literários no texto, e a
sua inexistência, inutilizaria toda funcionalidade e pertinência de muitos dos
trechos essenciais da obra.
O
leitor é conduzido numa descida lenta e irreversível à submissão absoluta de
uma mulher a outra. Simultaneamente, a sua paciência, resiliência e
expectativas, vão sendo testadas e demolidas, emulando, numa dimensão “real”, a
desintegração do Eu de Delphine e a sua metódica e infalível apropriação por
L..
A
impotência é quase palpável, ao testemunharmos os constantes pensamentos e
actos conciliatórios de Delphine face ao comportamento progressivamente
incompreensível e agressivo de L., como quem assiste ao arder do rastilho de
uma bomba impossível de despoletar.
“Sentia o seu olhar indignado, apontado para mim como uma
arma. Comecei a sentir-me culpada de uma coisa que ainda não existia (...) não
fazia sentido nenhum.”
Nesta
dialéctica doentia, é perceptível uma pesquisa aturada na psicanálise e
psicologia por parte da autora, e um cuidado extremo na construção das
personagens, para que a cada acto corresponda uma consequência lógica e não se
quebre, pela inverosimilhança, a adesão do leitor a este jogo de submissão.
A
experiência na escrita de argumentos cinematográficos é aqui bastante útil e
óbvia, contribuindo para conferir particular acuidade e tensão a cada diálogo e
silêncio entre as protagonistas.
L.,
como a consciência da narradora Delphine, antítese de tudo o que a Escrita
representa para si, personificação da “anti-literatura”, relembra-lhe, até à
derradeira página, os passos para o sucesso literário garantido, defendendo
intransigentemente a “verdade” e pugnando para que ela prevaleça na sua
escrita. No final, vence. Ou será que não?
Numa
das trocas de argumentos mais acesas do livro, L. e Delphine debatem prós e
contras para as suas posições sobre a literatura.
“Os leitores (...) esperam mais da literatura (...):
esperam o Verdadeiro, o autêntico, querem que lhes contem a vida, estás a
perceber? (...)- É assim tão importante que a vida que se conta nos livros
seja verdadeira ou falsa?- Sim, é importante. É importante que sejam verdadeiros.- Mas como podem saber? As pessoas, como dizes, talvez
precisem apenas que soe bem. Aliás, talvez seja esse o mistério da escrita: soa
bem ou não soa. Julgo que as pessoas sabem que aquilo que escrevemos nunca nos
é totalmente estranho. Sabem que há sempre um fio, um motivo, uma falha, que
nos liga ao texto. E aceitam que substituamos, que condensemos, que desviemos,
que alteremos. E que inventemos.”
Assistimos
ao confronto entre duas mundividências literárias, diametralmente opostas: a
literatura-ficção e a literatura-verdade.
A
literatura-ficção, representada pela narradora Delphine, em que o Real é
trabalhado, interpretado e reescrito, até ao grau de literariedade necessário
para poder ser considerada distinta de qualquer mero relato de actos e
pensamentos pessoais do quotidiano. Apesar de a defender acerrimamente,
Delphine acaba por ceder, perto do final, ao tentar o clássico “virar o feitiço
contra o feiticeiro”, desajeitadamente cedendo à cilada de tentar apropriar-se
da biografia que L. lhe vai revelando.
“-Mas não há uma verdade. A verdade
não existe. (...) Mas começamos a suprimir, estender, apertar, tapar os
buracos, estamos na ficção. Andava à procura da verdade, sim (...) Mas toda a
escrita é um romance. A narrativa é uma ilusão. Não existe. Nenhum livro deveria
ser autorizado a ter essa menção impressa”
A
literatura-verdade, hoje tão em voga, onde o marketing e uma série de
alusões à vida do escritor sacralizam o livro, elevam-no a um patamar de maior
pureza perante o leitor, por contarem em si o autor.
“Não me refiro ao resultado. Falo da intenção, do impulso.
A escrita deve ser a procura de uma verdade, caso contrário não é nada. (...) A
única escrita que existe é a escrita de si. O resto não interessa.”
O
resultado deste embate talhado por Delphine de Vigan, é uma obra híbrida, que
prova que que o livro, qualquer que seja o autor, a circunstância que relata ou
em que foi elaborado, não passa de um pretexto para envolver o leitor numa
realidade alheia à sua e com essa farsa, dissimular o escritor com o traje que
melhor lhe convier.
Ganha
quem lê, com a diversidade que recebe, e o autor, que vê a sua intimidade
reservada à criação e ao deleite dos pequenos nadas que apenas a si dizem
respeito.
Por
mais contraditório que possa parecer, em “A Partir de Uma História Verdadeira”,
a literatura surge resgatada como o derradeiro reduto de intimidade, numa época
em que quase toda a esfera privada (mesmo a dessa espécie em vias de extinção
que são os escritores) se torna pública, global e partilhada.
Este
livro é a demonstração cabal da personalidade e originalidade que o autor ainda
pode imprimir na sua obra, mesmo quando imerso na ficção e no seu mundo
interior.
“- Estamo-nos nas tintas para essa verdade (...)/
- Não, não estamos. As pessoas sabem-no, sentem-no. Eu
sei-o, quando leio um livro. (...)- Não achas que consegues senti-lo, como dizes, porque já o
sabes? Porque tiveram o cuidado de informar-te de alguma forma que se tratava
de uma história verdadeira, ou “inspirada em factos reais” ou «muito autobiográfica»,
e que essa simples etiqueta bastou para despertar em ti (...) um tipo de
curiosidade que todos temos (...) pelos episódios do quotidiano? Mas sabes, não
estou certa de que o real seja suficiente. O real, se é que existe, (...) precisa
de ser descarnado, transformado, interpretado. Sem um olhar, um ponto de vista,
é uma grande seca (...) é um total ansiogénico. E esse trabalho é sempre uma
forma de ficção.”
Com
um simples asterisco, repetido no início de cada capítulo e no final do livro (cujo
significado percebemos finalmente por volta da pg. 230), e com a surpresa
final, novamente muito literária, Delphine de Vigan revela-se a verdadeira
bonecreira, fabricando um “livro fantasma” sobre ela própria, a sua vida, o
ofício da escrita, uma verdadeira e envolvente ficção (que cumpre o objectivo
da própria narradora homónima, embora só o leitor, omnisciente graças aos
apartes da narradora, o saiba).
O
derradeiro mise-en-abime literário é completado pelo leitor, que
interpretará o livro dentro do livro dentro do livro, num ciclo interminável de
alternância, para no final ser novamente uno.
Chegados
à última página, percebemos onde fomos conduzidos, sem que para tal fossemos
vítimas de qualquer truque ou engano. Delphine de Vigan, apesar de jogar de
acordo com as regras impostas pelo sistema editorial, cumpre o seu plano de
escrever ficção e é bafejada pelo sucesso e reconhecimento merecidos. O
Goncourt e o Renaudault que juntou ao seu palmarés falam por si. Pela voz da
sua narradora, deixa-nos uma mensagem clara no final do livro.
“- Na verdade, Léa gostava de saber se é sincera. Por
vezes, ao ler o seu livro, ela teve dúvidas (...) Aquilo que conta é mesmo
verdadeiro? (...)Por um segundo, tive vontade de responder a Léa que tinha
acertado em cheio. Claro que não, era evidente que tudo aquilo era mera
efabulação, nada daquilo que eu contara, sucedera (...)Em seguida, tentei explicar-lhe (...) como o real me
parecia inacessível.- Mesmo que aquilo tenha sucedido (...), não deixa de ser
uma história que estamos a contar. Contamo-la a nós próprios. (...) Somos todos
voyeurs”...“Não acredito no tom de verdade (...) Estou absolutamente
convencida de que vós, nós, leitores, tantos quantos somos, podíamos ser
completamente enganados por um livro que se deixasse ler como verdade e que não
fosse senão uma invenção, um disfarce, pura imaginação. Penso que qualquer
autor minimamente hábil pode fazê-lo. Multiplicar os efeitos do real para fazer
com que acreditem que aquilo que está a contar aconteceu. E lanço o desafio
(...) de distinguir o verdadeiro do falso. Aliás, podia ser um projecto
literário escrever um livro inteiro para ser lido como uma “história
verdadeira”(...) pretensamente “baseado em factos reais”, mas onde tudo, ou
quase tudo, fosse inventado.”“- Seria esse livro menos sincero do que qualquer outro,
não estou certa disso. Talvez fosse, pelo contrário, de uma grande
sinceridade.”
(Publicado no
blog DeusMeLivro)