Jerónimo
Pizarro, aqui em co-autoria com Patricio Ferrari, com a ajuda da
Tinta da China (que o edita desde que iniciou a sua pesquisa), veio
trazer uma nova abordagem à obra de Fernando Pessoa, no sentido de
uma dessacralização dos estudos pessoanos, já cristalizados e nem
sempre satisfatórios ou sequer cientificamente inatacáveis, e da
própria figura do poeta, visto como um semideus de genialidade e
criatividade, contribuindo para um retrato mais fiel, contextualizado
e integrado de um dos maiores cultores da nossa língua.
Como
vem sendo hábito nestas edições, a grafia original é mantida,
opção que não é consensualmente aceite, mas reveladora de um
grande rigor histórico perante o espólio do poeta e de uma recusa
em alterar os originais com qualquer adaptação ou alteração
(excepto as necessárias para garantir a legibilidade, sempre
devidamente assinaladas).
“Eu
sou uma anthologia./Screvo tam diversamente/que, pouca ou muita
valia/Dos poemas, ninguém diria/ Que o poeta é um sòmente.”.
Assim escrevia Pessoa, em Dezembro de 1932, e é daqui que Pizarro
parte à descoberta do vasto universo heteronímico do lisboeta do
Mundo.
Na
introdução, Jerónimo Pizarro confessa que, dependendo dos critério
de inclusão e exclusão, a lista de heterónimos poderá ser ainda
maior. Na pesquisa de cerca de 30000 folhas do espólio pessoano, em
busca dos chamados “vestígios ficcionais”, o investigador
descobre a prática da “despersonalização dramática”, em que
várias personagens/“almas” de Pessoa, se vão sucessivamente
desdobrando e ramificando em outros nomes, outras vidas. Por exemplo,
é de Alberto Caeiro que nasce um “Ricardo Reis latente” e de um
Wyatt e um Crosse nasce um conjunto de personagens com o mesmo
apelido.
O
critério escolhido para inclusão nesta lista foi a “existência
de um nexo com pelo menos um escrito (…) ou uma tarefa específica
atribuída”. Para além disso, as personagens “são autoras
(publicaram textos nas revistas Orpheu e Athena, por exemplo) e por
vezes dialogam entre si “.
O
que é verdadeiramente Pessoa, vulgarmente conhecido como o Pessoa
ortónimo? Ou serão todos estes personagens, heterónimos e
pseudónimos também ele, o mesmo, apenas desdobrado em “inúmeros
espelhos”?
A
resposta fica em aberto, como quase sempre que este gigantesco
manancial literário é abordado. Mas o fascínio que emana desta
obra reside precisamente na capacidade da sua escrita, quase um
século depois da sua morte, ainda suscitar questões essenciais,
quase filosóficas (e até místicas para alguns, incluíndo o
próprio) sobre os contornos da obra literária e da autoria.
Nesta
antologia, esses limites são diluídos, quer entre o criador e as
suas criaturas, quer na relação entre as “criaturas”, que se
entrecruzam, citam e desdobram, segundo instruções expressas de
Pessoa (que nem sempre foram concretizadas), em cartas e escritos,
cujos fac-símiles podemos ler e apreciar.
Surpreende
(ou talvez não...) a diversidade de registos.
Para
quem pensava que o universo heteronímico pessoano se ficava pelo
género masculino, encontra aqui algumas excepções. Maria José,
uma jovem de 19 anos, corcunda, confinada aos limites da seu quarto,
apaixona-se pelo serralheiro que vê passar debaixo da sua janela e
escreve-lhe uma carta de amor que sabe que nunca lhe chegará.
Para
todas estas personagens, Pessoa criou assinaturas, por vezes até
cartões de visita e profissionais, com os quais enviava e recebia
correio.
Encarregou-as
de escrever em diversas línguas (inglês, francês, alemão),
efectuar trabalhos de tradução e comentário, textos críticos e
até sessões mediúnicas, descritas com pormenor.
O
detalhe que algumas destas construções ficcionais assumem torna-se
a um tempo inacreditável, pelo aparente contraste entre si, e
deslumbrante, por serem prova de que, numa mesma mente, cabem tantos
quantos sejamos capazes de manter.
No
final do Posfácio, numa demonstração de honestidade intelectual e
reconhecimento do trabalho anteriormente desenvolvido por outros
autores nesta área específica, Pizarro refere ainda personagens
presentes noutras obras que procuraram o mesmo desiderato desta
colectânea, explicando as razões da sua exclusão e deixando em
aberto a investigação sempre inacabada dos muitos Eus pessoanos.
Um
livro indispensável, não só para os estudiosos da matéria, como
para qualquer bibliófilo, pela sua contribuição no alargamento
fundamentado da nossa perspectiva sobre a literatura que molda (e
moldará) tanto da nossa portugalidade e do cunho literário
lusitano, dentro e fora das fronteiras físicas.
Na
vida, como na literatura, a percepção que projectamos e recebemos é
tudo. O resto é pura imaginação e conjectura. Desse contraste se
alimentou Pessoa e as pessoas/espelhos que albergava. Passaremos
gerações a tentar decifrá-las. Este é mais um tijolo dessa
construção.
(Publicado na comunidadeculturaearte.com)
(Publicado na comunidadeculturaearte.com)
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