Aos nossos irmãos brasileiros,
associamos velhos arquétipos, eternizados pelas novelas da Globo e pelas
notícias que a imprensa deles veicula – malandros, relaxados, despreocupados,
alegres, sensuais, descomplexados, abertos, irascíveis, com tudo para “dar
certo” mas com tudo a “dar errado”, embora sempre de bem com a vida.
Seguindo uma tendência recente do
mercado português, a literatura brasileira chegou em força. Infelizmente
começou-se com pezinhos de lã, com consagrados e valores seguros, que os
leitores não podem ser desafiados. Honra seja feita aos editores pioneiros, que
há anos insistem na divulgação e publicação dos nomes emergentes no Brasil,
como o malogrado André Jorge, editor da Cotovia, que durante anos apostou no
talento literário do outro lado do oceano (a título de exemplo, foi o primeiro
a publicar Tatiana Salem Levi em Portugal, quando ainda nem o Brasil se
apercebera da sua qualidade) e se despediu da vida com a edição de dois belos
livros do polémico e assertivo Marcelo Mirisola.
Mais recentemente, a Tinta da
China tem tido papel preponderante nessa divulgação, com edições sucessivas de
novos talentos e velhas glórias.
Pela Companhia das Letras
(pertencente ao gigante conglomerado Penguin Random House), chega-nos “Um Copo
de Cólera”, obra-prima de Raduan Nassar, mesmo a tempo da consagração com o
Prémio Camões de 2016.
Escrita numa quinzena de 1970 e
publicada em 1978, em plena ditadura militar (que durou até 1984), basta uma
leitura para que seja clara a actualidade e acutilância de cada frase.
De dimensão reduzida e elevado
poder dramático e poético, nestas páginas inspiradas encontramos uma novela
(maior do que um conto, bem menor do que um romance) cuja escrita é um
verdadeiro exercício de liberdade formal e criativa, perfeita no enquadramento
de uma violenta discussão conjugal, onde voam impropérios, berros, silêncios,
agressões da mais diversa índole, inclementes e com a frontalidade feroz que só
os momentos extremos nos permitem atingir.
Mas nem só de cólera vive este
opúsculo.
Todo o livro se centra na figura
masculina, o narrador que é tudo menos omnisciente e até relativamente
distanciado do seu relato.
Outrora um macho-alfa, este
professor universitário (de filosofia talvez) é hoje uma sombra envelhecida e
casmurra dos seus tempos áureos e, surpresa ou talvez não, passa grande parte
da discussão fechado na sua mente, pesando prós e contras, as melhores
estratégias de ataque e defesa, como se a vida se tratasse de um mero jogo do
qual urge sair vitorioso.
A perspectiva do homem, que vive
isolado do Mundo, na sua casa de campo longe da cidade, é racional e racionalizada, transformando-o num
cliché tão pesadamente ideológico e institucional que se aproxima da caricatura,
metáfora do tudo o que de pior o machismo e paternalismo representavam no
Brasil da época e, para além das aparências e atrás de portas fechadas, ainda
representam em demasiados lares. As palavras que cospe são o prolongamento da
sua mentalidade, mas sempre debitadas no que imaginamos ser o tom certo,
pesadas para produzir o máximo de dano.
A mulher, jovem e idealista,
jornalista segura de si e conhecedora do homem que encara, habilmente desmonta
cada argumento, frustra os intentos do “opositor” e com descaramento,
arrogância e pertinácia, mascara a mágoa que toda a discussão lhe causa.
O que começa como uma manhã
tranquila, depois de uma noite de sexo tórrido, passa a inócua troca de
palavras sobre um acontecimento aleatório, para, em pouco tempo, se elevar a
verdadeiro choque de gerações, politizado e sem tréguas, onde mágoas latentes e
silêncios passados tomam conta das emoções.
Uma troca de acusações no reino
da sentimentalidade, rápida e irreversivelmente degrada-se em arena de debate
político feroz, entre os estabelecidos e os que lutavam para se estabelecer, os
amordaçados e os que coabitavam passivamente com uma ditadura militar, que
condicionava as liberdades fundamentais. A micro-realidade de um casal é
apresentada como projecção inevitável de uma macro-realidade nacional, que a
afectava mortalmente.
Apenas no último capítulo
(primeiro e último capítulo, de um total de sete, são homónimos. “Chegada” é o
seu nome.) conhecemos a “voz” e a perspectiva feminina em discurso directo, num
assomo genial de ironia do autor.
Ao leitor, demonstra com classe e
subtileza que o chauvinismo nem sempre tem os efeitos pretendidos e deixa a
narrativa em aberto, o que poderia dar uma excelente sequela, não fosse o
detalhe anteriormente referido fechar estruturalmente a obra.
Uma estocada final no anacronismo
da mentalidade brasileira vigente à época, disseminada também ao Ocidente,
onde, ainda hoje, a violência nas relações é comummente aceite, como
decorrência quase natural de uma relação consensual (v. qualquer estudo sobre a
matéria).
Neste obra, tudo tresanda a
desejo e sedução, mas também carne e sangue, suor e tesão, ataque e defesa, uma
verdadeira batalha física, moral, intelectual, onde todos saem feridos e não há
vencedores nem vencidos.
Talvez nós, leitores, vençamos no
final, brindados com o uso singular e certeiro do português aberto e luminoso
do outro lado do Atlântico que, graças aos deuses, foi mantido sem adaptações
aos nossos vocábulos fechados e expressões cujo formalismo quase teatral seria
totalmente descabido neste contexto.
Os dois protagonistas, nunca
nomeados ou verdadeiramente descritos, amam-se e odeiam-se em igual medida.
Uma dose de despeito transborda a
cada troca verbal, como se juntas formassem um copo de cólera em ebulição, onde
não cabe nem mais um gota que o arrefeça.
São díspares as suas vivências e
convicções políticas, sociológicas, vitais.
A cama já não chega para calar as
palavras não ditas, para evitar a confrontação de duas gerações opostas de um
Brasil em convulsão, constantemente adiado.
Mais de meio século depois, o que
mudou?
A sensualidade latente, o poder
de sedução e a manipulação mantêm-se intactos.
Os extremos tocam-se apenas para
se ferirem e obterem vitórias temporárias.
É um Amor autofágico, que se
acaba por não ter mais por onde arder (Saravá Tê).
Será também assim o Brasil,
sempre ferido, em chamas? Terá que morrer para se reerguer?
(Texto publicado no DeusMeLivro.com)
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