25 outubro 2016

Um Copo de Cólera - Raduan Nassar


Aos nossos irmãos brasileiros, associamos velhos arquétipos, eternizados pelas novelas da Globo e pelas notícias que a imprensa deles veicula – malandros, relaxados, despreocupados, alegres, sensuais, descomplexados, abertos, irascíveis, com tudo para “dar certo” mas com tudo a “dar errado”, embora sempre de bem com a vida.
Seguindo uma tendência recente do mercado português, a literatura brasileira chegou em força. Infelizmente começou-se com pezinhos de lã, com consagrados e valores seguros, que os leitores não podem ser desafiados. Honra seja feita aos editores pioneiros, que há anos insistem na divulgação e publicação dos nomes emergentes no Brasil, como o malogrado André Jorge, editor da Cotovia, que durante anos apostou no talento literário do outro lado do oceano (a título de exemplo, foi o primeiro a publicar Tatiana Salem Levi em Portugal, quando ainda nem o Brasil se apercebera da sua qualidade) e se despediu da vida com a edição de dois belos livros do polémico e assertivo Marcelo Mirisola.
Mais recentemente, a Tinta da China tem tido papel preponderante nessa divulgação, com edições sucessivas de novos talentos e velhas glórias.
Pela Companhia das Letras (pertencente ao gigante conglomerado Penguin Random House), chega-nos “Um Copo de Cólera”, obra-prima de Raduan Nassar, mesmo a tempo da consagração com o Prémio Camões de 2016.
Escrita numa quinzena de 1970 e publicada em 1978, em plena ditadura militar (que durou até 1984), basta uma leitura para que seja clara a actualidade e acutilância de cada frase.
De dimensão reduzida e elevado poder dramático e poético, nestas páginas inspiradas encontramos uma novela (maior do que um conto, bem menor do que um romance) cuja escrita é um verdadeiro exercício de liberdade formal e criativa, perfeita no enquadramento de uma violenta discussão conjugal, onde voam impropérios, berros, silêncios, agressões da mais diversa índole, inclementes e com a frontalidade feroz que só os momentos extremos nos permitem atingir.
Mas nem só de cólera vive este opúsculo.
Todo o livro se centra na figura masculina, o narrador que é tudo menos omnisciente e até relativamente distanciado do seu relato.
Outrora um macho-alfa, este professor universitário (de filosofia talvez) é hoje uma sombra envelhecida e casmurra dos seus tempos áureos e, surpresa ou talvez não, passa grande parte da discussão fechado na sua mente, pesando prós e contras, as melhores estratégias de ataque e defesa, como se a vida se tratasse de um mero jogo do qual urge sair vitorioso.
A perspectiva do homem, que vive isolado do Mundo, na sua casa de campo longe da cidade, é  racional e racionalizada, transformando-o num cliché tão pesadamente ideológico e institucional que se aproxima da caricatura, metáfora do tudo o que de pior o machismo e paternalismo representavam no Brasil da época e, para além das aparências e atrás de portas fechadas, ainda representam em demasiados lares. As palavras que cospe são o prolongamento da sua mentalidade, mas sempre debitadas no que imaginamos ser o tom certo, pesadas para produzir o máximo de dano.
A mulher, jovem e idealista, jornalista segura de si e conhecedora do homem que encara, habilmente desmonta cada argumento, frustra os intentos do “opositor” e com descaramento, arrogância e pertinácia, mascara a mágoa que toda a discussão lhe causa.
O que começa como uma manhã tranquila, depois de uma noite de sexo tórrido, passa a inócua troca de palavras sobre um acontecimento aleatório, para, em pouco tempo, se elevar a verdadeiro choque de gerações, politizado e sem tréguas, onde mágoas latentes e silêncios passados tomam conta das emoções.
Uma troca de acusações no reino da sentimentalidade, rápida e irreversivelmente degrada-se em arena de debate político feroz, entre os estabelecidos e os que lutavam para se estabelecer, os amordaçados e os que coabitavam passivamente com uma ditadura militar, que condicionava as liberdades fundamentais. A micro-realidade de um casal é apresentada como projecção inevitável de uma macro-realidade nacional, que a afectava mortalmente.
Apenas no último capítulo (primeiro e último capítulo, de um total de sete, são homónimos. “Chegada” é o seu nome.) conhecemos a “voz” e a perspectiva feminina em discurso directo, num assomo genial de ironia do autor.
Ao leitor, demonstra com classe e subtileza que o chauvinismo nem sempre tem os efeitos pretendidos e deixa a narrativa em aberto, o que poderia dar uma excelente sequela, não fosse o detalhe anteriormente referido fechar estruturalmente a obra.
Uma estocada final no anacronismo da mentalidade brasileira vigente à época, disseminada também ao Ocidente, onde, ainda hoje, a violência nas relações é comummente aceite, como decorrência quase natural de uma relação consensual (v. qualquer estudo sobre a matéria).
Neste obra, tudo tresanda a desejo e sedução, mas também carne e sangue, suor e tesão, ataque e defesa, uma verdadeira batalha física, moral, intelectual, onde todos saem feridos e não há vencedores nem vencidos.
Talvez nós, leitores, vençamos no final, brindados com o uso singular e certeiro do português aberto e luminoso do outro lado do Atlântico que, graças aos deuses, foi mantido sem adaptações aos nossos vocábulos fechados e expressões cujo formalismo quase teatral seria totalmente descabido neste contexto.
Os dois protagonistas, nunca nomeados ou verdadeiramente descritos, amam-se e odeiam-se em igual medida.
Uma dose de despeito transborda a cada troca verbal, como se juntas formassem um copo de cólera em ebulição, onde não cabe nem mais um gota que o arrefeça.
São díspares as suas vivências e convicções políticas, sociológicas, vitais.
A cama já não chega para calar as palavras não ditas, para evitar a confrontação de duas gerações opostas de um Brasil em convulsão, constantemente adiado.
Mais de meio século depois, o que mudou?
A sensualidade latente, o poder de sedução e a manipulação mantêm-se intactos.
Os extremos tocam-se apenas para se ferirem e obterem vitórias temporárias.
É um Amor autofágico, que se acaba por não ter mais por onde arder (Saravá Tê).

Será também assim o Brasil, sempre ferido, em chamas? Terá que morrer para se reerguer? 

(Texto publicado no DeusMeLivro.com)

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