O Mapa e o Território - Michel Houelebecq
Cáustico, egocêntrico, hedonista, irónico, desbocado, misantropo, pessimista, por vezes a raiar o xenófobo, definitivamente incómodo e desbragadamente insolente.
A tudo isto junte-se o brilhante.
Porquê? Simples. Porque recusa a conformidade e assume as suas personagens de forma saudavelmente realista, expondo todos os seus podres, por muito difíceis que possam ser.
Para nós e (quem sabe?) para ele.
Para nós e (quem sabe?) para ele.
O carácter que insistem em colar a si é simultaneamente a sua benção e maldição.
E assim se cria o mito e a pergunta ressoa: onde começa o escritor e termina a personagem (e vice-versa)?
Os seus livros são uma lição sobre o difícil equilíbrio entre o kitsch, o ligeiramente lamechas e o genial.
Pela sua sensibilidade, pelo seu retrato franco, directo e sem concessões da sociedade actual e do homem contemporâneo.
O "bad boy" da literatura moderna não passa afinal de um homem como tantos outros, com as suas alegrias e frustrações, com a capacidade quase inata de pensar demais e, com a testosterona no máximo, acabar por fazer exactamente o inverso do planeado.Porque a carne é fraca. E a literatura também pode ser simplesmente como nós: falível, defeituosa, capaz do melhor e do não tão bom.
Esta literatura que cada vez mais faz falta, em que nos vemos despidos e com um dedo acusador e trocista espetado na cara, em tom desafiador.
Quase tudo o que lemos nos dias que correm soa naturalmente a falso. Porque realmente o é.
Mas quando de tal nos apercebemos, perde-se um pouco aquela "magia" de por momentos nos abstrairmos do que somos e embarcarmos no que outros vivem a cada página virada.
O problema é que raramente temos essa percepção. Simplesmente deixamos-nos ir com a corrente.
Houelebecq recusa frontalmente essa facilidade e brinda-nos com todo o fel que este Mundo vai produzindo, a um ritmo imparável e sem filtros.
Em O Mapa e o Território, Michel Houelebecq reconhece que retirou inspiração do Wikipédia e, ironia das ironias, ganha o Goncourt que já tardava na sua prateleira.
Finalmente a sua obra atinge equilíbrio e maturidade e em seu torno materializa-se o consenso que muitos receavam assumir.
O livro é um portento.
Uma reflexão sobre a Arte e a sociedade de consumo, com a sagacidade e o sarcasmo a que já nos habituou e o bónus de utilizar personagens reais, inclusive um cameo seu, cujo destino literário valerá a pena descobrir (e que deve ter sido uma delícia escrever).
Desta vez, deixa de lado a linguagem e a imagética mais escatológicas e foca a atenção no lento e subtil desmontar da hipocrisia e da aparente aleatoriedade que rodeia o acto de criação, mantendo uma história sólida, como sempre dominada por homens, consumidos pela procura ansiosa de propósito para a sua existência ou pelo desgaste que a dedicação exclusiva a um projecto de vida necessariamente acarreta.
A facilidade com que passa dos assuntos e diálogos mais triviais (e por vezes dispensáveis...) para considerações filosóficas de uma pertinência e acerto quase perfeitos, fazem dele um autor único.
A sua linguagem coloquial encobre o subtexto que a suporta. Entre as tiradas mais fanfarronas, encontramos pedaços de pura arte e fina literatura.
Descobrir Houelebecq é lê-lo nas entrelinhas.
O Diabo está nos detalhes.
E Houelebecq adora ser demónio.
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