27 maio 2016

Viagem aos Confins da Cidade - Leonardo Lippolis (Antígona, 2016)


 A recente publicação da Antígona é uma reflexão, em modo simultaneamente académico e acessível, acerca da Cidade e dos reflexos desta estrutura na sociedade contemporânea (e vice-versa), entre 1972 e 2001.
O que poderia limitar-se a uma mera explanação teorética restrita, ganha contornos mais extensos e atractivos, enriquecida pela relação dialéctica que o autor habilmente descreve entre a Arte (com enfoque no cinema, mas com múltiplas referências à pintura, escultura, instalações, arte cívica, Street Art, Social Art...), a ideologia (o capitalismo, o socialismo, o situacionismo, o neo-situacionismo) e a arquitectura.
A moldura temporal referida no título, aparentemente aleatória num primeiro contacto, não é de todo dispicienda e apesar de 2001 parecer uma data já longínqua, não belisca a relevância e urgência do texto.
O ano de 1972 é vulgarmente referido para localizar o fim do modernismo racional, funcional e eficiente, com a demolição do bairro de Pruitt-Igoe em St. Louis, Missouri, símbolo do fracasso do funcionalismo arquitectónico, idealizado por Le Corbusier e difundido globalmente como a solução mais indicada para a organização da existência humana em ambiente urbano.
2001 é o ano da queda das Torres Gémeas em Nova Iorque, com todo o seu simbolismo de crise sociológica e ideológica, fim de uma certa ingenuidade que o triunfo do capitalismo conferira durante décadas às sociedades ocidentais e a perda irrecuperável de uma falsa sensação de invulnerabilidade das urbes pós-modernas, baseadas num cariz fortemente securitário e utilitário[i] , em que o espaço urbano,  pesadamente vigiado e controlado, ainda mantinha (e mantém) por propósito fundamental a tranquila e eficiente realização das funções essenciais da vida: “produzir, repousar-consumir, habitar e circular de forma rápida (as quatro categorias da Carta de Atenas, formulada por Le Corbusier e outros em 1933)” (pág. 14).
O lazer, a criatividade, a imaginação e a cultura são relegados para os espaços abandonados ou literalmente entre os grandes edifícios que esmagam o horizonte visual, espaços esquecidos, ou heterotópicos, frequentemente resgatados por projectos artísticos e de intervenção cívica, que procuram reaproximar os cidadãos da cidade, interagindo com ela, conferindo-lhe uma dinâmica que supere a espuma dos dias e suscite o questionamento, a curiosidade e uma mais apurada cosnciencialização face ao meio envolvente.
Coincidência, ou talvez não, ambos os projectos arquitectónicos tiveram como autor o arquitecto Minoru Yamasaki e a conclusão da construção das Torres deu-se poucos meses após a demolição do bairro.

A importância da ideologia na Arquitectura, 
segundo Frank Lloyd Wright

Os traços da urbe do Outono do pós-modernismo, para que nos remete o título da obra, são ainda os mesmos que hoje testemunhamos em qualquer local do Mundo, com raríssimas excepções. A explicação é simples e só na aparência simplista: o criador é exactamente o mesmo, assim como a filosofia que, na generalidade dos casos, preside à sua criação.
As variáveis verdadeiramente relevantes são a nacionalidade e a visibilidade de cada projecto, quer pelo contexto em que surgem, quer pela relevância dos nomes envolvidos na sua concepção e conclusão. 
A tese de Lippolis é expressa pelo próprio logo nas páginas 18 e 19:

“(...)a metrópole ocidental é cada vez mais vista como efeito, mas também como causa, de uma distopia em curso e de apocalipse no futuro próximo. Apresenta-se no imaginário colectivo como o triste cenário em que se consuma aquele Outono de uma civilização moribunda que Johan Huizinga já divisara (...)” “(...)o pós-moderno liquidou rapidamente a utopia como encarnação da vontade racionalizante do moderno (...) no horizonte dos arquitectos que ainda se consideram críticos a respeito dos destinos do mundo, prevalece um estado de espírito próximo da condescendência e um projecto que não vai além da defesa de uma liberdade marginal”. “(...) a extinção de um projecto de transformação radical do mundo (...) permite que essa análise seja recuperada seja por quem for, (...) incluindo os de carácter conservador de quem, para atacar a sociedade da abundância, lhe opõe, não uma ideia diferente de felicidade, mas medidas de moralização e de proibição.”

Quanto à Arte, outro vector da análise, a perspectiva é igualmente pessimista (ou talvez realista), com o autor a dissecar alguns projectos conceptualmente desafiantes do status quo da época, mas que, na sua generalidade, foram rapidamente apropriados e massificados pela cultura dominante.

“ A arte (...) limita-se a procurar vazios parcelas descarnadas de territórios onde possa insinuar-se e continuar a pensar que é possível alguma forma de liberdade. (...) a melancolia da arte projecta espaços outros (as «heterotopias» de Michel Foucault) e tenta «inventar o quotidiano» (Michel de Certeau), sem voltar a ter a ousadia de um pensamento revolucionário acerca dos destinos do mundo.”

O isolamento a que estamos votados deriva de forma indelével da “anulação da experiência do espaço físico da cidade”, remetendo-nos aos limites físicos da nossa habitação e condicionando a vivência do mundo exterior quase exclusivamente à mediação da omnipresente e viciante tecnologia, “através da Internet e da televisão, as verdadeiras paisagens do nosso imaginário quotidiano” (pg. 72).
O edifício onde decorre a acção de "High Rise" (2016)
O cinema e a literatura, em particular nos géneros da ficção científica e distopia, são dois outros instrumentos de que Lipollis se serve para dar maior lastro à sua análise, confirmando e estendendo os seus pressupostos iniciais e buscando, nas obras que refere, uma percepção mais popular e culturalmente propagada da sua perspectiva apocalíptico-pessimista do capitalismo e da arquitectura que, simultaneamente, o reflectiu e o moldou, com uma miríade de referências que vão desde Ballard[ii] a Cronenberg, passando por Orwell (“1984”), Burgess (“Laranja Mecânica”), John Carpenter, entre outros.


O cenário de muitas das obras citadas (e da época de 1960 e início da década seguinte) aponta consistentemente para uma “sociedade doente” (pg.38) e um "mundo desumanizado, angustiante e absurdo", onde “um forte mal estar social” é evidente. A criminalidade,  retratada como endémica, desenrola-se  n´"uma paisagem suburbana decrépita, onde o superpovoamento coincide com o isolamento social", "paisagens a que a nossa sensibilidade está funestamente habituada", o que não as torna menos inquietantes.
A conclusão a que Lippolis nos conduz pacientemente, espera-nos logo nas páginas introdutórias do livro, sem surpresas nem falsas expectativas:

“O triste destino do mundo contemporâneo parece estar fatalmente contido na dialéctica entre a descrição de uma distopia catastrófica já em curso, levada a cabo por intelectuais, filósofos, sociólogos urbanos, romancistas e cineastas e a vontade dos artistas de encontrarem um triste refúgio em heterotopias urbanas.”


Tom Hiddleston em "High Rise" (2016)
O balanço final deste (des)equilíbrio é francamente aterrador, embora temperado com alguns projectos com sucesso desigual[iii], mas geradores de mudanças efectivas nas comunidades que os albergaram, que poderão ser tidos em conta como possíveis soluções para evitar a anunciada desintegração da cidade, tirando “partido de lugares marginais da cidade para criar espaços de alteridade, livres do controlo invasivo da estrutura económica e funcional”(pg. 140).
A bola passa para as mãos do leitor, mais informado depois desta leitura, e a quem cabe, em última instância, a responsabilidade de procurar na sua esfera de influência, por mais reduzida que possa parecer, agir por forma a contrariar a indesmentível e aparentemente irreversível tendência aqui retratada.
É um aviso, mas também um estímulo à intervenção consciente no meio que diariamente fazemos também nosso, pelo mero facto de existirmos hoje, aqui, agora.



[i] Por exemplo, o zoning na cidade de Los Angeles e no Burning Man Festival, que o autor descreve com detalhe.
[ii] A propósito da fantástica obra de J. G. Ballard, infelizmente pouco divulgada e traduzida em Portugal, o novo filme de Ben Whitley “High-Rise”, baseado no livro homónimo de Ballard e também escalpelizado nas páginas de “Viagem aos Confins...”, é extremamente recomendável e um sério aviso quanto aos perigos de uma cidade cada vez mais desligada das verdadeiras necessidades de todos e cada um dos seus cidadãos, para além das aparências e da futilidade dos confortos temporários. 
[iii] Os “community gardens” e os “adventure playgrounds”, por exemplo

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