A recente publicação da Antígona é uma reflexão, em modo simultaneamente académico e acessível, acerca da Cidade e dos reflexos desta estrutura na sociedade contemporânea (e vice-versa), entre 1972 e 2001.
O que poderia limitar-se a uma
mera explanação teorética restrita, ganha contornos mais extensos e atractivos,
enriquecida pela relação dialéctica que o autor habilmente descreve entre a
Arte (com enfoque no cinema, mas com múltiplas referências à pintura,
escultura, instalações, arte cívica, Street
Art, Social Art...), a ideologia
(o capitalismo, o socialismo, o situacionismo, o neo-situacionismo) e a
arquitectura.
A moldura temporal referida no
título, aparentemente aleatória num primeiro contacto, não é de todo
dispicienda e apesar
de 2001 parecer uma data já longínqua, não belisca a relevância e urgência do texto.
O ano de 1972 é vulgarmente referido
para localizar o fim do modernismo racional, funcional e eficiente, com a
demolição do bairro de Pruitt-Igoe em St. Louis, Missouri, símbolo do fracasso
do funcionalismo arquitectónico, idealizado por Le Corbusier e difundido
globalmente como a solução mais indicada para a organização da existência
humana em ambiente urbano.
2001 é o ano da queda das Torres
Gémeas em Nova Iorque, com todo o seu simbolismo de crise sociológica e
ideológica, fim de uma certa ingenuidade que o triunfo do capitalismo conferira
durante décadas às sociedades ocidentais e a perda irrecuperável de uma falsa
sensação de invulnerabilidade das urbes pós-modernas, baseadas num cariz
fortemente securitário e utilitário[i] , em que o espaço urbano, pesadamente vigiado e controlado, ainda mantinha
(e mantém) por propósito fundamental a tranquila e eficiente realização das funções
essenciais da vida: “produzir, repousar-consumir, habitar e circular de forma
rápida (as quatro categorias da Carta de Atenas, formulada por Le Corbusier e
outros em 1933)” (pág. 14).
O lazer, a criatividade, a
imaginação e a cultura são relegados para os espaços abandonados ou
literalmente entre os grandes edifícios que esmagam o horizonte visual, espaços
esquecidos, ou heterotópicos, frequentemente resgatados por projectos
artísticos e de intervenção cívica, que procuram reaproximar os cidadãos da
cidade, interagindo com ela, conferindo-lhe uma dinâmica que supere a espuma
dos dias e suscite o questionamento, a curiosidade e uma mais apurada cosnciencialização
face ao meio envolvente.
Coincidência, ou talvez não,
ambos os projectos arquitectónicos tiveram como autor o arquitecto Minoru
Yamasaki e a conclusão da construção das Torres deu-se poucos meses após a
demolição do bairro.
A importância da ideologia na Arquitectura,
segundo Frank Lloyd Wright
Os traços da urbe do Outono do
pós-modernismo, para que nos remete o título da obra, são ainda os mesmos que
hoje testemunhamos em qualquer local do Mundo, com raríssimas excepções. A
explicação é simples e só na aparência simplista: o criador é exactamente o
mesmo, assim como a filosofia que, na generalidade dos casos, preside à sua
criação.
As variáveis verdadeiramente
relevantes são a nacionalidade e a visibilidade de cada projecto, quer pelo
contexto em que surgem, quer pela relevância dos nomes envolvidos na sua concepção e
conclusão.
A tese de Lippolis é expressa
pelo próprio logo nas páginas 18 e 19:
“(...)a
metrópole ocidental é cada vez mais vista como efeito, mas também como causa,
de uma distopia em curso e de apocalipse no futuro próximo. Apresenta-se no imaginário
colectivo como o triste cenário em que se consuma aquele Outono de uma
civilização moribunda que Johan Huizinga já divisara (...)” “(...)o pós-moderno
liquidou rapidamente a utopia como encarnação da vontade racionalizante do
moderno (...) no horizonte dos arquitectos que ainda se consideram críticos a
respeito dos destinos do mundo, prevalece um estado de espírito próximo da
condescendência e um projecto que não vai além da defesa de uma liberdade
marginal”. “(...) a extinção de um projecto de transformação radical do mundo
(...) permite que essa análise seja recuperada seja por quem for, (...)
incluindo os de carácter conservador de quem, para atacar a sociedade da
abundância, lhe opõe, não uma ideia diferente de felicidade, mas medidas de moralização
e de proibição.”
Quanto à Arte, outro vector da análise,
a perspectiva é igualmente pessimista (ou talvez realista), com o autor a
dissecar alguns projectos conceptualmente desafiantes do status quo da época,
mas que, na sua generalidade, foram rapidamente apropriados e massificados pela
cultura dominante.
“
A arte (...) limita-se a procurar vazios parcelas descarnadas de territórios
onde possa insinuar-se e continuar a pensar que é possível alguma forma de
liberdade. (...) a melancolia da arte projecta espaços outros (as
«heterotopias» de Michel Foucault) e tenta «inventar o quotidiano» (Michel de
Certeau), sem voltar a ter a ousadia de um pensamento revolucionário acerca dos
destinos do mundo.”
O isolamento a que estamos votados deriva de forma indelével
da “anulação da experiência do espaço físico da cidade”, remetendo-nos aos
limites físicos da nossa habitação e condicionando a vivência do mundo exterior
quase exclusivamente à mediação da omnipresente e viciante tecnologia, “através
da Internet e da televisão, as verdadeiras paisagens do nosso imaginário
quotidiano” (pg. 72).
O edifício onde decorre a acção de "High Rise" (2016) |
O cenário de muitas das obras
citadas (e da época de 1960 e início da década seguinte) aponta
consistentemente para uma “sociedade doente” (pg.38)
e um "mundo desumanizado, angustiante e absurdo", onde “um forte mal estar
social” é evidente. A criminalidade, retratada como endémica, desenrola-se n´"uma paisagem suburbana decrépita,
onde o superpovoamento coincide com o isolamento social", "paisagens
a que a nossa sensibilidade está funestamente habituada", o que não as
torna menos inquietantes.
A conclusão a que Lippolis nos
conduz pacientemente, espera-nos logo nas páginas introdutórias do livro, sem
surpresas nem falsas expectativas:
“O
triste destino do mundo contemporâneo parece estar fatalmente contido na
dialéctica entre a descrição de uma distopia catastrófica já em curso, levada a
cabo por intelectuais, filósofos, sociólogos urbanos, romancistas e cineastas e
a vontade
dos artistas de encontrarem um triste
refúgio em heterotopias urbanas.”
Tom Hiddleston em "High Rise" (2016) |
O balanço final deste (des)equilíbrio
é francamente aterrador, embora temperado com alguns projectos com sucesso
desigual[iii], mas geradores de
mudanças efectivas nas comunidades que os albergaram, que poderão ser tidos em
conta como possíveis soluções para evitar a anunciada desintegração da cidade,
tirando “partido de lugares marginais da cidade para criar espaços de
alteridade, livres do controlo invasivo da estrutura económica e funcional”(pg.
140).
A bola passa para as mãos do
leitor, mais informado depois desta leitura, e a quem cabe, em última
instância, a responsabilidade de procurar na sua esfera de influência, por mais
reduzida que possa parecer, agir por forma a contrariar a indesmentível e
aparentemente irreversível tendência aqui retratada.
É um aviso, mas também um
estímulo à intervenção consciente no meio que diariamente fazemos também nosso,
pelo mero facto de existirmos hoje, aqui, agora.
[i]
Por exemplo, o zoning na cidade de Los Angeles e no Burning Man Festival, que o
autor descreve com detalhe.
[ii]
A
propósito da fantástica obra de J. G. Ballard, infelizmente pouco divulgada e
traduzida em Portugal, o novo filme de Ben Whitley “High-Rise”, baseado no
livro homónimo de Ballard e também escalpelizado nas páginas de “Viagem aos
Confins...”, é extremamente recomendável e um sério aviso quanto aos perigos de
uma cidade cada vez mais desligada das verdadeiras necessidades de todos e cada
um dos seus cidadãos, para além das aparências e da futilidade dos confortos
temporários.
[iii]
Os “community gardens” e os “adventure
playgrounds”, por exemplo.
Sem comentários:
Enviar um comentário