Não é frequente ter diante de mim uma lenda, que me formou como ouvinte
e musicófilo e que, com a sua criatividade e técnica, contribuíu de forma
indelével para o progresso da Música.
Privilégio maior é assistir ao seu envelhecimento saudável e digno, editando
constantemente novos trabalhos discográficos e desafiando as suas próprias
capacidades, com a insatisfação própria dos génios humildes.
Jack DeJohnnette consta desse panteão por mérito próprio. Partilhou (e
partilha) palcos com quase todos os grandes do jazz, como Miles Davis, Keith
Jarrett, Dave Holland, Chick Corea ou Herbie Hancock, criando repertório
inevitável para qualquer músico ou fã do Jazz.
Na noite em que a Casa da Música se encheu para o receber, trazia como
programa a apresentação do seu novo álbum de piano-solo (Return, a editar em Abril
pela francesa New Velle Records, exclusivamente em vinil), estendendo o seu
requinte nas baquetas às 88 teclas do piano de cauda.
A solidão do piano revelou-se inspiradora para o americano, que deixou
para segundo plano o novo álbum, do qual tocou apenas três músicas (“Ode to
Satie”, “Silver Hollow” e “Ponta de Areia”), optando, para deleite do público,
por um alinhamento recheado de clássicos, que incluíu John Coltrane, Miles
Davis e Oliver Nelson.
O toada que imprimiu ao piano balançou entre a clássica melancolia
lenta e repleta de silêncios e a redescoberta entusiástica do instrumento que,
por influência parental, desde a primeira infância fez seu.
Embora a espaços tenha faltado alguma chama interpretativa em
composições que, originalmente, a têm de sobra, como a fabulosa “Stolen
Moments” desse álbum obrigatório de Oliver Nelson chamado The Blues And The Abstract Truth, o balanço foi extremamente
positivo.
A imediatamente reconhecível “I Love You Porgy”, no arranjo que
DeJohnette fez questão de creditar a Bill Evans, foi um dos momentos mais belos
da noite, com a melodia respeitada e a improvisação simples e certeira do
americano.
Os “trunfos” ficaram guardados para o final do concerto e o encore. Desafiando o público a
reconhecer a música que tocava, ofereceu à Casa o clássico da MPB “Ponta de
Areia”, com que termina o seu novo álbum, da autoria de Milton do Nascimento e
eternizada pela voz de Elis Regina (ouçam a versão no concerto de Montreux).
Depois dos aplausos, pediu “one more” com um sorriso traquina, como se da
sua estreia em palco se tratasse e faltasse mostrar um truque novo. Às teclas
trouxe “Now´s The Time”, música de Charlie Parker, em que um Miles Davis de
muito tenra idade começava a impôr o seu sopro como voz incontornável.
Faltava ainda a despedida.
Depois de novo pedido do músico, surgiu “Nayma” em todo o seu
esplendor, antecedida de uma introdução bem abstracta e aventurosa, para depois
desembocar, tranquila, no mar que são as notas urdidas pelo guru Coltrane.
A nova encarnação do DeJohnette foi uma revelação. Pela serenidade e
curiosidade com que aborda o piano, pela generosidade no alinhamento e na
comunicação com o público, foram 90 minutos para recordar. Return é um disco a não
perder.
Alinhamento
Ode to Satie (DeJohnette)
Stolen Moments (Oliver
Nelson)
Will O' The Wisp (Manuel
de Falla, arr. Gil Evans & Miles Davis)
Silver Hollow
(DeJohnette)
I Love You Porgy
(Gerswin)
Central Park West
(John Coltrane)
Flamenco Sketches (Miles Davis)
Ponta de Areia (Milton do Nascimento)
Encore
Now´s The Time (Charlie
Parker)
Nayma (John Coltrane)
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