“ O feminismo, como comentou a escritora Mary Sheer, em 1986, «é a ideia radical de que as mulheres são pessoas.»”
Feminismo. Palavra carregada de simbolismo, que ainda faz
tremer homens, algumas mulheres e bastantes conservadores, pregadores e outros quejandos.
Rebecca Solnit é uma voz incómoda para nós, homens,
porque nos relembra uma verdade que todos conhecemos, perpetuamos e pouco
fazemos para modificar: as mulheres ainda são consideradas seres inferiores em
todos os contextos do nosso quotidiano.
Em casos mais extremos mas não menos familiares, são
tratadas como seres descartáveis, como nos situações de violência doméstica e
crimes sexuais.
Embora o contexto social referido no livro seja o
norte-americano, nada remete para uma qualquer realidade distante, sendo antes
extensível a qualquer país ocidental desenvolvido, o que torna a sua leitura
frequentemente dolorosa e preocupante, mas também divertida e desafiante.
O mero facto de Solnit existir, transmite-nos alguma
esperança e alívio, pela tenacidade com que se faz notada e escutada, pela
pertinência da sua argumentação e pela inteligência que transparece da sua
escrita.
O título da obra poderá apontar para o clássico livro de
auto-congratulação dirigido ao público feminino, variações da ideia-base “os
homens são uns néscios imundos” distribuídas por umas dezenas de páginas, mas
nada poderia estar mais longe da verdade.
Sem perder a toada marcadamente feminista e humanista do
seu discurso, Solnit escreve com o cuidado de escapar à futilidade, ao argumento
fácil e à preguiça intelectual das generalizações, cuidadosamente apontando
excepções e contradições, destacando problemas
e contrabalançando-os com evolução, contextualização sociológica e
histórica e esboços de soluções e respostas.
O (bom) humor e a ironia são um bem vindo bónus,
contribuindo para tornar acessíveis a qualquer leitor assuntos nem sempre
fáceis ou consensuais.
Frases como “Pensem na quantidade de tempo e energia que
teríamos a mais e que poderíamos canalizar para outras coisas importantes, se
não estivéssemos a tentar sobreviver.” são paradigmáticas do seu estilo
provocador e corrosivo, enquanto nos deixam a pensar no quanto contêm de real.
Outro traço distintivo da seu estilo é a capacidade de
compreender o fenómeno de perpetuação da subalternização da mulher de forma
abrangente, incluindo as mais diversas áreas da cultura e sociedade, com
especial incidência nos media.
“Temos mais de 87000 violações por ano neste país todos
os anos, mas cada uma delas é invariavelmente descrita como um incidente
isolado. Os casos são tantos que formam uma mancha diante dos nossos olhos, mas
quase ninguém os relaciona uns com os outros ou dá nome à mancha.”.
A sua influência como ícone cultural e mediático atingiu
o zénit com a cunhagem da palavra “mansplain”,
com origem num ensaio que escreveu em 2008 e dá título a este livro.
A história real, que o ensaio descreve e de que parte
para abarcar uma realidade bem mais vasta, que envolve a arrogância masculina
em todo o seu esplendor, é hilariante, pelo que deixo o prazer da sua
descoberta ao leitor.
Quanto ao vocábulo, Solnit expressa sentimentos ambíguos
e contraditórios. Apesar de um mal disfarçado orgulho na façanha, recusa
qualquer crédito na sua criação e revela algum desdém na sua utilização, pela
sua carga demasiado generalizante e depreciativa.
No entanto, não resiste a uma achega mordaz: “Se isso não
está suficientemente claro no artigo, deixem-me dizer que adoro que as pessoas
me expliquem coisas que sabem e me interessam, mas que ainda não sei; quando me
explicam coisas que eu sei e eles não é que a conversa corre mal.”.
O objectivo da sua escrita não é ferir susceptiblidades,
embora, atendendo às temáticas em causa, tal se torne inevitável.
Reiteradamente retoma esse designio com acertadas ressalvas, mais por
honestidade intelectual do que por qualquer outro motivo.
A pertinência da sua reflexão é reveladora e
surpreendente, pela capacidade de ver além do óbvio e, para além de expôr e
denunciar realidades que poucos assumem, conseguir criar associações
inesperadas entre âmbitos aparentemente inconciliáveis, como o feminismo e as
evoluções recentes no casamento entre casais do mesmo sexo.
“As revoluções começam, acima de tudo, pelas ideias” e “a
libertação é um processo contagioso”.
No caso do casamento nos casais do mesmo sexo, Solnit
habilmente desmonta o argumento de que se tratou de um mero processo de
alterações legislativas e campanhas massivas conducentes a esse resultado.
Superando o meramente contextual e efémero, Solnit
atribui estas mudanças à “transformação da imaginação que levou ao declínio da
ignorância, medo e do ódio chamado “homofobia”(...) catalisado pela cultura e
promulgado por inúmeras pessoas queer que saíram da caixa chamada “armário”
para se assumirem em público”.
Outro aspecto essencial foi a quebra da hegemonia
masculina na relação de poderes dentro do casal, operada pelo movimento
feminista. Segundo a americana, “as feministas arrancaram o casamento do
sistema hierárquico (...) e reinventaram-no como uma relação entre iguais”.
Numa análise mais profunda conclui: “As pessoas que se
sentem ameaçadas pela igualdade no casamento sentem-se, ao que tudo indica, tão
ameaçadas pela ideia de igualdade entre casais heterossexuais como entre casais
do mesmo sexo.”. “Um casamento entre pessoas do mesmo sexo é inerentemente
igualitário (...) regra geral, trata-se de uma relação entre pessoas que estão
em pé de igualdade (...) livres de definirem os seus próprios papéis.”
Perante estas realidades, Solnit invectiva constantemente
o leitor a fazer a diferença, por actos ou palavras, porque é da esfera pessoal
que a mudança pode e deve surgir. As “ideias não podem ser apagadas” e estão
condenadas a ser propagadas, mesmo quando aparentemente derrotadas ou
esquecidas.
Solnit sabe-o e pugna para que também nós não o
esqueçamos.
A leitura deste conjunto de ensaios pode ser um começo,
mas nunca um fim. Aponta caminhos, cita profusamente estudos actuais e factos
históricos e convoca-nos a ver a verdade negra que, infelizmente, ainda nos
cerca e assombra.
A aceitação e reconhecimento desta verdade é condição
essencial para uma discussão sem preconceitos das suas causas e efeitos,
possibilitando assim uma autêntica e irreversível mudança de mentalidades.
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