O último dia do NOS Primavera Sound 2016 foi de balanços
e de curadoria pessoal (só para usar um termo mais na moda), que se revelou
certeira e compensadora.
As bandas e os horários em cartaz prometiam duas noites
bem opostas: uma mais calma e mediática (com french touch, rock tuga “armado ao pingarelho” mas mais gasto do
que as piadas do Herman José, explosões longas e reiteradas no céu ou batalhas abstractas,
que só quem está no palco tem pachorra para aturar por mais do que dez minutos
consecutivos) ou mergulhar de cabeça nas melhores esperanças da electricidade
que se vai ouvindo por estes dias.
Sem querer parecer quadrado ou saudosista (mas
evidentemente sendo-o), pergunto-vos: lembram-se daqueles tempos, provavelmente
na adolescência, em que a Música ainda tinha algum tipo de impacto emocional e
físico? Chegado ao Parque com essa ideia persistente, segui o instinto. Ignorando
escolhas mais óbvias, deixei a novidade e a possibilidade de divertimento puro
decidirem o meu percurso.
Resumindo desde já o que ainda suportei do
percurso-“alternativo”-que-foi-principal-para-a-maioria, para que os leitores
mais desprevenidos possam ler desde já o esperado destas crónicas:
- Air foram
uma sombra triste do passado que ajudaram a moldar. Quem, como eu, já os viu no
seu melhor, por exemplo, no Sudoeste de 2004 (saudades de quando era mais do
que uma gigantesca discoteca ao ar livre), com uma actuação memorável, só pode
suspirar de lamento por a idade lhes ter sido tão inclemente. Nem os grandes
sucessos óbvios chegaram para salvar a face. Facilmente se poderá argumentar
(como o faz Vitor Balenciano AQUI)
que nem todos os concertos têm obrigatoriamente que ter uma sonoridade
festivaleira (ou seja, um som cheio, marcado, com batida forte e sem grandes
nuances). Mas para escapar a esse cliché,
Arte, classe e bom gosto são primordiais. PJ Harvey conseguiu-o com mestria e
distinção. Os Air falharam redondamente.
- Os Chairlift
chegaram em versão serviços mínimos, contando que a fama que os precede
mundialmente chegasse para fazer esquecer qualquer falha. Limitaram-se a
demonstrar cabalmente a desaquação da sua presença no palco principal. Cass
McCombs, só para citar um artista que actuou no mesmo local e horário, criou um
ambiente memorável de recepção à grande maioria dos festivaleiros que chegava
ao recinto no dia anterior, com o seu rock relaxado, a beber na americana e no folk, e a sua
voz quente de deserto. O airplay não
deve nem pode justificar posições privilegiadas. Desinspirados, cinzentos e
monocórdicos, foram o pretexto perfeito para aconchegar o estômago com um bela
sandes de presunto e queijo da Badalhoca.
- Explosions in
the Sky trouxeram a mesma fórmula de sempre ao palco Super Bock. Construção
calma e segura, peça a peça como um puzzle, até ao apogeu final, volume
apontando o céu com a mesma calmaria ritmica e o dobro da intensidade sónica. É
bom, sem dúvida. Mas quem vê um ou dois concertos dos americanos (como é o meu
caso), já os viu a todos.
- Batles são uma banda de referência. Virtuosos
para além de qualquer crítica, o seu desempenho instrumental é imponente e
praticamente sem falhas. Com o filho do histórico Anthony Braxton e o baterista
de Helmet na mesma banda, música de qualidade é o mínimo exigível. Mas, por
vezes, isso não chega e ontem foi o caso. O risco que os espectáculos com
grandes músicos normalmente oferecem é a sensação de o público estar a mais,
porque completamente arredado do que se vai passando em palco, como se
assistisse a um ensaio de garagem de uma lenda do improviso. É memorável sim,
mas para quem está na mesma frequência daqueles génios, o que não foi o
caso.
- Os Linda Martini
são um dos grandes triunfos do marketing dos últimos anos em Portugal, uma
fraude musical que todos conhecem, mas ninguém tem coragem de apontar, porque
não é fixe dizer mal de uma banda que está na moda e dá uns bons “gostos” no
Facebook dizer que se é fã, mesmo quando se pensa o contrário. O interessante é
este tipo de raciocínio nem na puberdade fazer grande sentido, embora
compreensível, por pressão social e ausência de segurança nos gostos e nas
tendências. Porém, esse sentido evapora-se quando, perante a óbvia clonagem que
fazem At The Drive-In, Sparta, Sleather-Kinney ou Mars Volta, a que juntam
“letras” terríveis em português, a crítica não é capaz de apontar que “o rei
vai nú”, álbum após álbum de fórmulas gastas, repetidas ad nauseum. Junte-se a isto uns pozinhos de presunção e snobismo,
com amuos por não serem cabeças de cartaz em festivais portugueses, e temos a
receita para o desastre, perdão, sucesso.
Querem uma reportagem do concerto deles? Procurem noutro freguesia,
sim?
O Palco. (sim,
ponto apenas, ex-ATP) e o Palco
Pitchfork foram os meus portos de abrigo na noite fresquinha do Parque.
Car Seat Headrest foi
um belo arranque para o melhor cartaz do Palco Pitchfork até ali. Banda na
berra nos últimos tempos, graças ao seu recente álbum Teens of Denial (Matador, 2016) e ao seu anterior Teens of Style (Matador, 2015), este
último com uma produção mais caseira e low-fi, o rótulo indie
fica-lhes a matar, principalmente ao vocalista e mentor do projecto Will
Toledo.
Típico rapaz americano, apesar de desde cedo ser o “geek” da
escola, em vez de comprar uma arma na internet e massacrar os colegas, optou pela
terapia por via da arte e deixa a pele nas letras e músicas que toca.
Com pormenores bem interessantes ligados à sonoridade
mais psicadélica, a banda deixou já de ser promessa, para se afirmar como
projecto a seguir com atenção no futuro. Temas como “Vincent” e “Drunk
Drivers/Killer Whales” são garantia de que este é só o início auspicioso de uma
carreira fulgurante.
Os Drive Like Jehu,
com a sua atitude “vai tudo abaixo e não fazemos prisioneiros”, deixaram bem
assente ao que vinham quando o vocalista Rick Froberg se dirigiu ao público
ironicamente com um “Hope you like this. If you don´t, there´s a lot of other things to see”. Percursores
do algum do melhor hardcore que os
noventas do século passado testemunharam, juntamente com bandas seminais como
os Fugazi, regressaram em 2014 e mantêm-se (radio)activos desde então.
Trouxeram ao Porto um alinhamento bruto e seco, a passar
em revista temas chave como "Hand Over Fist" ou “Head Start to
Purgatory”, onde as sementes do math-rock, hoje tão popular, já explodiam nos
seus riffs inflamáveis. Uma pedrada
no charco, com direito a crowdsurfing
e moche como é da praxe.
Depois de uma passagem rápida por Titus Andronicus, onde afortunadamente ouvi uma excelente versão do
hino dos Ramones “Blitzkrieg Bop”, passei por Air, de que rapidamente desisti,
e depois de afogar as mágoas em sumo de malte, regressei para A R Kane. Sem saber o que esperar,
perante a total ausência de referências que deles tinha, deparei-me com um pop
rock mais sereno e apostado nos tons mais escuros e nas notas mais abertas, com
um toque etéreo que foi perfeito para a chegada da noite intensa que se
aproximava.
Ty Segall and The
Muggers foram donos e senhores da última noite do NOS Primavera Sound. A
síntese perfeita entre o poder do rock de garagem mais pesado e a festividade,
que só um verdadeiro bobo da corte como Ty Segall consegue, mesmo com música
aparentemente mais “séria”.
Extremamente comunicativo e sempre com um disparate
pronto a vociferar, banda e público foram “vítimas” do seu carisma pré-trintão.
A música, essa é de primeira. O alinhamento apontado ao mais recente Emotional
Mugger (2016, Drag City), não esqueceu “Finger” do fantástico Melted (2010, Goner Records), “The
Feels” e “Manipulator” do álbum homónimo de 2014. “Thank God For The Sinners”
foi o hino não oficial do festival e uma versão de “LA Woman” dos The Doors
fechou com chave de ouro um concerto épico.
Um dia chegará ao palco principal, mas ainda não foi
desta.
Sobrou ainda tempo para assitir ao que restava do
concerto do seminais Shellac que,
apesar de terem tocado em todas as edições do NOS Primavera Sound, desde que
aterrou no Parque da Cidade do Porto, inexplicavelmente
nunca tinha escutado.
Que maravilha foi constatar que, ao contrário dos AIR, a
idade também pode ser garante de divertimento garantido, de música desafiante e
soberbamente tocada.
Diante de mim, tinha o génio por detrás de quase todos os
grandes álbuns que interessam das últimas décadas. Steve Albini, 53 anos, a
tocar como se tivesse 20 anos e a vida pela frente, feliz da vida, descontraído
e a malhar naquelas cordas com a pujança e elegância de quem sabe exactamente o
que faz.
Tanto miúdo imberbe que ainda agora começa a tocar e
pensa ter descoberto a pólvora, sem sequer perceber que o que toca já foi mais
que gravado e regravado e nada é realmente novo, faria um favor aos seus
futuros ouvintes se ali tivesse estado, com uma câmara e um bloco de notas.
Tive a felicidade de ouvir uma versão completamente
alucinada de “Killers”, uma tradução rock de uma luta entre uma facção que se
quer divertir e outra que quer acabar com a diversão. Obviamente, ganha a
diversão. Seguiram-se em catadupa “Billiard Player Song”, “Wingwalker”, “The
End of Radio” e “Watch Song”, entre ecos de gargalhadas absurdas e linhas de
notas e de texto improvisadas naquele momento, que foram a despedida perfeita
para um dia em que o risco de apostar no desconhecido valeu cada segundo.
80000 pessoas (mais de metade estrangeiras) não podem
estar enganadas, quando escolheram o NOS Primavera Sound para passarem um final
de semana calmo, repleto de boa música, boa comida e uma paisagem deslumbrante,
com o conforto do espaço amplo para circular livremente e excelentes condições
de higiene e salubridade.
De 8 a 10 de Junho de 2017, está garantida a repetição
desta versão gourmet do festival que Barcelona celebrizou, e lá estarei para dizer
que tal foi.
Até para o ano.
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