“Não é assim tão fácil escrever sobre coisa nenhuma”.
Coisa nenhuma, para o comum dos mortais, é uma lista de
compras ou um recado no frigorífico. Para escritores como Patti Smith, banalidades
tornam-se singularidades, com a mesma dignidade narrativa que a morte sentida
de uma personagem querida ou de uma surpresa no enredo que o vire do avesso.
Depois do êxito inesperado do fantástico Just Kids (Apenas Miúdos, Quetzal, 2011),
M Train (Quetzal, 2016) é o regresso de Patti Smith à narrativa. Ao apuro da
linguagem, junta-se uma evocação onírica do seu passado, com enfoque na sua
vida familiar e quotidiana, num tom profundamente pessoal.
Numa
entrevista recente, confessava a propósito de M Train: “O Just Kids aconteceu porque o Robert Mapplethorpe tinha-me pedido
para o escrever pouco antes de morrer. (...) Foi muito planeado. E decidi que o
seguinte não seria assim, aliás, seria o oposto. Sem plano, sem história, sem
responsabilidade a não ser para comigo mesma. Escrevi o que me vinha à ideia.
Daí ter dado o nome M Train, que quer mesmo dizer algo como “o comboio da
mente”. Ia para o meu café favorito, todas as manhãs, e deixava que as ideias
caíssem no papel, só isso.”
É um livro corajoso, pela proximidade que, aparentemente
sem qualquer esforço, tece connosco, os leitores, os fãs, os bibliófilos em
busca constante de novas referências e pistas para melhor lermos e nos lermos
através da alma generosa de quem se deixa nas páginas partilhadas.
M Train é um longo caderno de apontamentos e notas
dispersas, entrecortadas por poemas criados impromptu,
trechos literários alheios e inspiradores, discursos rabiscados à pressa em
guardanapos, instantâneos da vida e de locais significativos, diários de
viagens sem plano antecipado.
A sua estrutura assenta numa rosa dos ventos temática. A
Norte encontramos os sonhos, alicerces da sua vida e da sua escrita. Os livros
que a acompanham, física e espiritualmente estão a Sul, a Este os cafés que
frequenta, perto de casa e Mundo fora, onde cria e se encontra e a Oeste, por
fim, as fotos, essenciais ao livro, para fazer corresponder uma referência
imagética a passagens centrais.
Fred Smith, o marido de Patti, no dia do seu primeiro aniversário de casamento |
Noutras direcções, juntamos a estes rumos fundamentais as
memórias e evocações (com especial destaque para o seu marido Fred Sonic Smith,
a quem dedica o livro, e o seu irmão Todd, ambos falecidos cedo demais), as
viagens (sempre enriquecedoras e inesperadas, inspiradoras para ela e, por
transferência, para nós), os objectos (repletos de simbolismo e encerrando em
si pessoas, épocas, lugares) e a escrita, o processo central de criação de um
texto novo, capaz de sintetizar pensamentos numa ideia que faça sentido.
“Os escritores e os seus livros. Não posso partir do princípio que o
leitor esteja familiarizado com todos eles, mas acabará por ficar familiarizado
com os meus? Só posso esperar que sim, pois ofereço o meu mundo numa bandeja
repleta de alusões várias.”
Em forma de recompensa pela paciência do leitor,
espectador das suas derivas mentais razoavelmente desordenadas, no final de cada capítulo somos brindados com frases inspiradas, que fazem todo
o caminho percorrido até ali valer a pena.
Um desses momentos felizes, condensa o seu sentido do
Tempo e da Vida, da literatura e do próprio M Train.
“Tenho vivido dentro do meu próprio livro. Um livro que nunca planeei
escrever e em que vou registando o movimento do tempo (...) Revivi momentos que
foram perfeitos pela inevitabilidade da sua certeza. O Fred a abotoar a camisa
de cor caqui que costumava usar nas aulas de voo. Os pombos a regressarem ao ninho
no nosso alpendre. A nossa filha Jesse à minha frente a estender-me os braços.
- Oh, mãezinha, às vezes sinto-me como se fosse uma árvore nova.
Queremos coisas que não podemos ter.Procuramos recuperar um momento, um
som, uma sensação. Quero ouvir a voz da minha mãe. Quero ver os meus filhos
enquanto crianças. De mãos pequenas, de pés velozes. Tudo muda. O rapaz já
crescido, o pai morto, a filha mais alta do que eu a chorar devido a um sonho
mau. Por favor, fiquem para sempre, digo eu às coisas que conheço. Não se vão
embora. Não cresçam.”
Com Paul Bowles, em Tânger |
Ao contrário de Just
Kids, onde a escritora disserta, com alguma ingenuidade e esperança, sobre
o passado, aqui o Tempo impõe-se de outra forma. Patti tem pressa em aproveitar
a vida que ainda lhe resta, consciente e conformada com o facto de que já foi mais
longa. Onde antes procurava um rumo para a sua existência, com a urgência de
quem sentia ter uma voz única a partilhar, hoje, menos ousada e mais discreta,
essa busca, longe de esmorecer, adaptou-se à realidade imposta pelo peso dos
dias e das contrariedades (a que raramente se refere, mas se subentende em cada trecho) .
Longe de ser pessimista, o realismo aqui é escapista, com
um pé na fantasia e outro nos nadas do quotidiano, aparente lixo literário,
reciclado com o carinho de quem os vive como se de uma grande aventura se
tratasse.
“Não é assim tão
fácil escrever sobre coisa nenhuma”, mas todos os grandes autores o fizeram
em determinada altura. Como sempre na sua carreira, Patti Smith contraria
convenções e, com talento e sensibilidade, empresta-lhe a claridade dos dias
soalheiros e a densidade das emoções mais recônditas.
Legítima herdeira e testemunha do melhor que o ócio e a
solidão (acompanhada) podem trazer a uma mente criativa e inquieta, a americana
partilha a sua intimidade, entre o vício do café e das séries policiais, os
seus gatos, as experiências mundanas do quotidiano, numa linguagem
propositadamente porosa e requintada, a que junta um imaginário onde reverbera
em cada sílaba o seu profundo conhecimento literário. E os livros, sempre os
livros, e os seus autores, Villa-Lobos, Chatwin, Bowles, Sebald ou Aira, que invoca
incessantemente, como personagens que fez seus e recusa deixar fora do alcance
da mão e da mente.
Embarcamos no combóio M, da memória, onde somos
convidados a partilhar a viagem e com toda a naturalidade, descobrimos como se
alimentam as labaredas do Amor e do Saber e, no processo, nos encontramos no
Outro e nas pequenas vicissitudes diárias que tornam cada novo dia numa
aventura em potência.
Confiante nas suas capacidades, Patti deixa esquecidos os
maneirismos de estrela rock e abraça a sua individualidade, os seus gostos
peculiares, a sua mundividência, para com eles tecer o seu retrato da artista
enquanto anciã, descrevendo a sua viagem por este mundo em mudança, onde o
Tempo se transfigura, entre relógios sem ponteiros e viagens repentinas, saltando décadas e ligando eventos remotos, com o espírito livre que sempre alimentou.
O Café ´Ino, que frequentou |
O seu tempo presente vive de tempos idos que ainda são os
seus, dolentes e contemplativos, no seu palácio da memória, na sua extensa
biblioteca, na galeria de cafés que habita e nos túmulos para onde se dirige em
constante peregrinação.
A consciência da Morte e o desejo de mais vida.
Uma fantasia? Uma versão da realidade?
“Acredito na vida, que um dia todos nós iremos perder. (...)
apercebi-me, muito recentemente, de que terei atravessado uma linha
inconscientemente escondida na verdade da minha cronologia.”. “O meu lar é uma
secretária. A amálgama de um sonho. O meu lar são os gatos, os meus livros e a
minha obra nunca terminada. Todas as coisas perdidas que um dia poderão chamar
por mim, os rostos dos meus filhos que um dia irão chamar por mim. Talvez não
sejamos capazes de separar a realidade do sonho nem de recuperar um estímulo
por demais desgastado, mas podemos insistir no nosso próprio sonho de vida e
mantê-lo persistentemente intacto.”
Durante a leitura do seu livro, partilhámos sonhos e
tempos.
Não é afinal disto que é feita a Literatura?
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