“Acho que as pessoas que escrevem diários e tiram apontamentos sobre
aquilo que pensam são uns idiotas. Só estou a fazer isto porque alguém me
sugeriu. Como veêm, nem sequer sou um idiota original. O que torna tudo mais
fácil. É só deixar correr. Como um cagalhão quente a descer por uma colina.”.
Charles
Bukowski.
Um
dos escritores mais míticos e profícuos da geração Beat e dos poucos que sobreviveu
nas décadas seguintes com a sanidade suficiente para contar a história.
Entre
cerca de meia centena de publicações (prosa e poesia), guiões para cinema e
artigos diversos, manteve uma influência constante sobre gerações de
escritores, que infrutiferamente o emularam ou se “inspiraram”/“homenagearam” a
sua obra e estilo inconfundível.
O
capitão saíu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio (Alfaguara,
2016) colige alguns registos diarísticos referentes ao período entre 1991 e
1993, os anos anteriores à sua morte em 1994, vítima de leucemia.
Acima
de tudo, Bukowski apresenta-se como alguém para quem a escrita é o Santo Graal,
a sua religião, que o mantém vivo, activo e produtivo.
A
sua rotina diária passa obrigatoriamente pela rotina matinal do jogo, das
apostas nas corridas de cavalos, entre dias melhores (em que ganha qualquer
coisa) e piores, onde personagens inusitadas, como o Louco dos Gritos ou o
Olhos Zangados, se intrometem no seu sossego misantropo, de apostas cuidadosas,
de tal forma marcado pela pobreza do passado que não consegue ter perdas ou
ganhos de monta.
À
noite, frente ao computador, aproveita a companhia da música clássica que toca
na rádio (a única que suporta e colecciona como uma colecção de cromos de
basebol), para pôr a escrita em dia, entre reflexões avulsas, desabafos e
algumas tiradas a que, com a mesma satisfação dos tempos áureos, atribui o
brilhantismo que merecem.
Sobre a Vida
Esqueçam
a humildade do escritor dedicado ao seu ofício ou a análise detalhada do
processo de escrita, trabalhado à exaustão durante anos de dedicação à causa.
Aqui não há tangas, presunção ou qualquer traço de hipocrisia.
As
palavras são-lhe familiares como o ar que respira e recusa-se ceder à
facilidade de se repetir e se limitar a corresponder às expectativas,
procurando a frase nova e escrevendo quase febrilmente (com as limitações
naturais das suas provectas sete décadas), “numa dança com a morte” que insiste
em comandar.
A
Morte paira na sua mente e na sua Arte, como se adivinhasse a sua proximidade e
a consciência apurada dela e de si, aguçam o seu mau génio e alertam-no para a
sua finitude.
A
velhice, que lhe rouba disponibilidade e acuidade, ainda o inspira a tentar a
superação.
“Cada frase é um novo começo.”.
The Laughing Heart, por Tom Waits
Os
pedidos inusitados dos fãs, que se introduzem na sua casa sob os pretextos e
argumentos mais surreais, como uma peça jornalística ou um ensaio fotográfico,
roubam-lhe tempo para a sua “oração” diária, mas divertem-no de sobremaneira,
pelo absurdo da fama e pelo retrato óbvio de uma certa obssessão pelo contacto
com os “famosos” que representam, como se o talento e a visibilidade mediática se
pudessem transmitir por osmose.
O
pessimismo reina na sua perspectiva do Mundo, com o cinismo e a ironia que
sempre o acompanharam. As reminiscências do passado de glória e pura
fanfarronice (embora mergulhado na penúria e na instabilidade laboral
constante), são frequentes e trazem consigo a eloquência que só as memórias bem
regadas a álcool e outros aditivos são ainda capazes de espoletar.
“O desafio e a glória. A electricidade. Foda-se, a vida era boa, a vida
era divertida. Éramos todos grandes homens, ninguém se metia connosco. E para
dizer a verdade, sabia muito bem. Álcool e umas quecas. E muitos bares, bares
cheios de gente.”
Apesar
do ambiente onde a sua escrita floresceu, Bukowski soube sempre manter-se à parte
da literatura mais “engagé” com os tempos conturbados que os EUA viviam,
principalmente na década de 60 do século passado. A sua opção foi sempre “brincar
com as palavras”, mas também urdir um manto protector da realidade, com a qual
não se queria misturar.
Sobre a Escrita e a Morte
“Eu não andava à procura de justiça nem de lógica. Nunca andei. Talvez
seja por isso que nunca escrevi como protesto social. (...) É impossível fazer
uma coisa boa a partir de algo que não existe. Aqueles tipos queriam que eu
mostrasse medo, (...) Mas a única coisa que eu sentia era nojo.”.
Os
seus dias são animados pelas pequenas epifanias: uma nova sinfonia que nunca
escutou, uma inesperada vitória na pista de corridas ou uma tirada certeira nos
escritos nocturnos.
Nos
bons momentos, para combater a amargura dizia “Quero compreender a vida, a
felicidade da vida”. Mas logo em seguida, regressa tranquilamente ao
seu lugar seguro: o pessimismo endémico e trocista. “caminhamos em direcção à
miragem, desperdiçando a nossa vida como toda a gente.”.
Embora
consciente do seu valor, encara a escrita e os seus colegas de ofício com as
devidas distâncias e até algum desdém. O seu despretensiosismo crónico e a sua
atenção ao que o rodeia impedem-no de sacralizar a escrita, que apelida de
irrelevante, e os escritores, verdadeiros “intrujões”
pedantes, vivendo frequentemente de uma falsa imagem de liberdade e
libertinagem, financiada nos bastidores por rendimentos de “heranças” obscuras e mães extremosas
de bolsos fundos.
“Somos feitos de papel. Existimos graças à sorte, no meio de
percentagens, temporariamente. E isso é a parte melhor e a parte pior, a questão temporal. E não há nada a fazer.
(...) Podemos mudar a nossa aceitação, mas talvez isso também seja errado. Se
calhar pensamos demais. É preciso sentir mais, pensar menos.”
Como
qualquer ser pensante, o americano contradiz-se constantemente. Mas opta por
avançar e evitar ceder qualquer espécie de margem ao imobilismo e a inércia,
para que tanto a vida como a escrita mantenham o tónus e a imprevisibilidade,
deixando o instinto guiar a inspiração. Se (ainda) o consegue ou não, isso já é outra
história. Mas tal intento, já depois dos 70 anos, é refrescante e devolve-nos
alguma esperança no que existe para além do mofo a que tresanda tanta da
literatura e da narrativa biográfica, quase hagiológica, que ainda nos impõem
como verdadeira e cool, para aumentar
as vendas dos mesmos livros de sempre, reeditados periodicamente, com títulos
curtos e capas novas, talvez amarelas, quem sabe.
“É preciso chafurfar na lama de vez em quando. (...) Depois de ter
passado pelo pior,
conseguimos escrever de maneira mais feliz e libertadora.”
conseguimos escrever de maneira mais feliz e libertadora.”
Cena de "Factotum", baseado no livro homónimo de
Bukowski,onde se ouve o fabuloso poema "Roll the Dice".
Numa altura em que as referências literárias lhe são já indiferentes, resta-lhe o consolo da rotina - “um lugar onde ir, uma coisa para fazer” - para esquecer ou superar o medo da solidão total e derradeira, da “morte a morder-me os calcanhares”.
“Agora a minha maior influência sou eu”; “Era bem melhor quando era capaz de imaginar a
grandeza dos outros, mesmo quando ela nem sempre existisse”.
Charles
Bukowski, o escritor, provou, sem sombra de dúvida, que o mundano, em todo o
seu esplendor, pode ser tão literário e poético como qualquer obra do cânone
ocidental.
Charles
Bukowski, o homem, despe-se e despede-se neste pequeno opúsculo, agarrando-se às
derradeiras fímbrias de uma vida e obra já míticas, com a ironia seca, a linguagem
livre de preconceitos e o humor deprecatório que fizeram, fazem e farão por
muitas décadas as delícias dos leitores.
Nirvana
Não
é um epitáfio per se, mas uma pérola
inesperada que nos relembra porque ainda vale a pena viver mais, viver melhor,
falhar, lutar, vacilar, lutar melhor, falhar outra vez, perder e talvez, com
sorte e suor e amor e dedicação ao que nos é sagrado, vencer o inevitável Nada
final. (perdão Beckett, não é plágio, é inspiração...).
“Que se lixem os deuses, que se lixe este jogo.”
Charles
Bukowski venceu, por K.O..
Game Over.
Uma pequena conversa, sem censura
“Está
uma porta aberta algures e estou aqui a morrer de frio, mas não me levanto para
a fechar porque as palavras estão a fluir e isso dá-me demasiado prazer para
conseguir parar. Mas, porra, é o que vou mesmo fazer. Vou levantar-me, fechar a
porta e mijar.
Pronto, já está. Já fiz as duas coisas. Até vesti uma camisola. O velho
escritor veste uma camisola, senta-se, olha para o ecrã do computador e escreve
sobre a vida. Haverá coisa mais sagrada do que esta? E, meu Deus, já pensaram
na quantidade de mijo que um homem produz ao longo da vida? Quanto come e
quanto caga? Toneladas. É horrível. O melhor é morrermos e sairmos depressa
daqui, estamos a contaminar tudo com as coisas que expelimos. Todos, nem as
bailarinas escapam. (...)
Deve ser estranho viver comigo. Para mim é.
Boa noite.”.
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