Autismo de Valério Romão (Abysmo)
A escrita é um solitário e continuado acto de Fé.
Fé do escritor em si próprio, no seu estilo, no seu eventual talento, no alcance da mensagem ou exercício criativo que pretende apresentar ao Mundo.
Fé no Outro, que o lê e, consciente ou não, procura descortinar quanto de si encontra nas palavras que faz suas, mesmo que apenas nos breves momentos em que as vê.
Torna-se acto de coragem quando sentimos verdade nas palavras, o pulsar e a frontalidade de cada sílaba nos soa realmente parte de um todo orgânico, palpável.
Quando o escritor se deixa ficar na história que entrega à eternidade, o leitor invariavelmente pressente essa partilha e surgem os grandes livros, desarmantes, únicos.
O fascínio está precisamente nesta partilha de experiências, pessoal e intransmissível, no jogo de sombras que se cria entre o criador e a criatura, de que o leitor é espectador e procura ingenuamente perceber onde acaba a ficção e começa a realidade.
Autismo é um desses solitários exemplos de como a literatura ainda é o último reduto da humanidade em estado puro.
Nascido da experiência real de parentalidade do autor, o facilitismo e sentimentalismo barato que o tema-título faria esperar dão lugar aqui a uma linguagem cuidada e directa, sem concessões, no equilíbrio perfeito entre a tensão dos diálogos e os monólogos interiores, com capítulos curtos alternando entre diversos registos.
O centro nevrálgico de toda a acção desenvolve-se em torno de uma questão: como criar a ilusão de normalidade quando os factos da vida e um trágico acontecimento fortuito a tornam simplesmente impossível e intolerável?
O centro nevrálgico de toda a acção desenvolve-se em torno de uma questão: como criar a ilusão de normalidade quando os factos da vida e um trágico acontecimento fortuito a tornam simplesmente impossível e intolerável?
O passado teatral e a formação filosófica de Valério Romão transparecem no texto de Autismo, conferindo-lhe acuidade e profundidade dramática e formal, mas o que o torna realmente especial é a forma desarmante como cada personagem nos é apresentada, sem filtros nem a artificialidade de grande parte da ficção unidimensional que grassa pelas FNAC desta vida.
Quando retomo o que senti ao lê-lo ocorre-me simplesmente o vocábulo autenticidade.
Nas palavras, nas ideias, no subtexto, nos silêncios...
Livros destes ficam connosco depois de os devolvermos à estante e recuperam-nos a Fé no que temos de melhor (e de pior...).
Venham os próximos.
O leitor agradece.
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