01 setembro 2012

Pequenos nadas

Winesburg, Ohio - Sherwood Anderson (Ahab)

Como leitor inveterado e obstinadamente crente na minha seita de ídolos pagãos iluminados pela centelha divina, encontrar uma editora como a Ahab tem sido uma dádiva.
A Ahab nasceu da carolice e teimosia de um casal único do Porto, a Joana Pinto Coelho e o Tiago Szabo, que, unindo esforços e sonhos, se atirou sem rede a um projecto editorial de divulgação da melhor literatura estrangeira ainda por publicar em português.
O extremo cuidado e bom gosto em todos os detalhes de cada novo volume, transformam cada livro num objecto de puro deleite, quer pelos autores e textos divulgados, quer pela qualidade ímpar de todos os detalhes da publicação, desde as irrepreensíveis traduções, às capas criadas de raiz para cada livro e até ao próprio papel e formatação do texto.
O Prémio Ler/Booktailors para Editora Revelação de 2011, as pontuações máximas invariáveis e unânimes a cada novidade literária e as constantes referências em todos os tops literários dignos de registo são a mera constatação de que, mesmo num País incapaz de reconhecer o verdadeiro talento como o nosso, a perserverança e o amor pela Arte ainda conseguem trazer felicidade a quem dá o litro por aquilo em que acredita e a todos os que usufruem dessa entrega altruísta a valores maiores.

Com Winesburg Ohio, somos, sem surpresapresenteados com nova pérola literária.   
A sua estrutura é simples: um conjunto de "short-stories" (cada uma destacando um habitante em particular), tendo por fio condutor e personagem omnipresente a localidade-título, situada no Midwest americano, por volta dos anos 20 do século passado.
Nada de muito novo e apelativo, até que nos deparamos com Winesburg em todo o seu esplendor bucólico e castiço, por via da escrita genial de Sherwood Anderson e por momentos, mais do que meros assistentes ou transeuntes, somos verdadeiros habitantes daquela vila remota onde Judas perdeu as botas.
Sherwood Anderson, contrariando expectativas, escreve num estilo aparentemente imediatista e sem grandes preocupações estéticas.
O seu triunfo reside nas personagens em si, que retrata e enquadrada na perfeição, tornando-as capazes dos actos e palavras mais inesperados, mas deixando ardilosamente espaço ao leitor para que complete os seus perfis com quanto de si ou da sua mundividência encontra nelas, fazendo lembrar a espaços a tradição oral das lendas ou mitos locais.
O fresco que nos deixa é assim humanizado, empático e intemporal, polvilhado daqueles pequenos nadas de que só as pequenas localidades são capazes de lembrar e perpetuar, não deixando de transparecer também um refrescante desapego desse microcosmos mesquinho e por vezes avassaladoramente sufocante e um desejo de libertação e superação, que habilmente encobre (ou demonstra) com as inofensivas excentricidades de quem tudo faz para simplesmente superar o tédio e a modorra das vidas que se recusam a mudar.
Na Winesburg de Anderson encontramos reflexos da sua própria história pessoal, nomeadamente o célebre episódio que o próprio catalogou de "escape da sua existência material", em que aos 26 anos, com uma vida perfeitamente estabilizada todos os níveis, desapareceu durante 4 dias e, regressado,  decidiu abandonar tudo e todos e dedicar-se em exclusivo à literatura.
O seu espectro pairou sobre gigantes da literatura universal como Hemingway ou Faulkner.
Lê-lo é perceber quão pouco mudamos em quase um século e humildemente ceder que somos ínfimos pedaços de vida á espera do dia em que tudo acaba.
A não ser que, afortunadamente, tenhamos a clarividência e ousadia de olhar para lá das nossas fronteiras...

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