20 dezembro 2013

Anna Calvi @ Casa da Música - Uma diva para o séc. XXI


Anna Calvi é uma diva. Pequena em tamanho, mesmo com os seus enormes stillettos,vermelho sangue na camisa e nos lábios carnudos, em palco transfigura-se assim que soa a primeira nota. Um voz possante, carregada de dramatismo e vida(s), perfeita para as letras poéticas e confessionais que jorram dos seus discos.
Revelada ao Mundo em 2011, o álbum de estreia homónimo garantiu-lhe reconhecimento imediato, pelo poder que revelava em cada melodia, como se de repente recuassemos a tempos imemoriais em que a globalização era inconcebível e a música era peça fulcral na criação de verdadeira Arte. Ao vivo, se dúvidas houvesse de que estamos perante um talento singular, estas rapidamente se desvanecem.
Acompanhada de um trio de excelentes músicos, que se vão revezando entre teclas, guitarra e baixo, com uma bateria impecável a marcar o seu pulsar, a britânica eleva-se naturalmente, sem a facilidade dos truques das "palminhas" ou de falsas empatias, fabricadas em laboratório para reacções imediatas. A música fala por ela, sem espelhos nem fumos difusos. Com um repertório repartido entre os seus dois registos de estúdio, facilmente descortinamos a qual dos álbuns pertence cada música.
Com "One Breath", Anna dá-se ao luxo de recuperar o fôlego, deixando respirar as letras e jogando com as dinâmicas de "attack & release" com uma mestria renovada, trazendo o silêncio e as mudanças rítmicas perfeitamente ensaiadas para uma actuação sem mácula, que soa natural e fluída como um rio que, inexorável, se encaminha para o mar. Onde "Anna Calvi" era visceral e explosivo, "One Breath" revela- se quase tântrico e lânguido, particularmente ao vivo, onde nos deleitamos com o virtuosismo e talento vocais e instrumentais desta artista única.
O público portuense, estranhamente contido e silencioso, parece respeitar quase religiosamente a dimensão operática do rock que emana do palco, aguardando paciente o termo de cada música para se manifestar nas suas cadeiras. Não estamos decididamente num festival ou num qualquer estádio. Aqui a pirotecnia fica a cargo da pedaleira modesta e do incrível aparelho vocal de Calvi, incapaz de falhar, mesmo quando parece caminhar na corda bamba entre notas impossiveis ao comum dos mortais.
Os singles de apresentação dos seus álbuns abrem com chave de ouro o concerto, com um som magnífico emanando do sistema da Casa da Música e preparando o público para a intensidade que se seguia.
"Sing to Me", uma das mais belas canções de amor de 2013, evoca os fantasmas de Bristol, com os Portishead bem presentes no minimalismo da melodia e nos ecos esvoaçantes dos coros reproduzidos nas teclas. Ao jogo de escondidas que é "Cry", em que somos apanhados desprevenidos com uma explosão de riffs, segue-se uma das mais aguardadas da noite e "First We Kiss" não desaponta. A alegria esfuziante do primeiro beijo roubado transparece ingénua e perfeita como todos os grandes momentos o devem ser.
Com "Carry Me Over", as influências minimalistas presentes em "One Breath" tornam-se incontornáveis, com o vibrafone a tomar o protagonismo, tocando em loop hipnotizante, perante o silêncio quase atónito do público, ansioso pelo ataque da guitarra feroz que chegou em todo o seu esplendor, num momento em que o estúdio ficou a milhas daquele palco.
Só, com um foco sobre si e a sua inseparável Telecaster, Calvi sussurra-nos ao ouvido o hino definitivo da paixão desenfreada. O Boss ficaria orgulhoso de encontrar a sua "Fire" vista do lado feminino: sedutora, intensa e inesquecível.A caminho do inevitável encore, "Desire" e "Love Won't Be Leaving" são meros instrumentos para os solos improvisados surgirem da guitarra, numa torrente que desmente o mito de que não existem boas guitarristas e pretexto para um curto e merecido descanso.
De regresso a um público rendido que aplaude de pé, Anna presenteia-nos com uma viagem ao deserto, a fazer lembrar um Ry Cooder entalado entre Paris e Texas com uma guitarra( sem ) slide, para depois se decidir por Paris, com uma pungente versão da "Jezebel" de Piaf, com tanto de salero como de rock puro em cada acorde.
No final, o mar. " Rider to the Sea" é uma melodia incontornável do alinhamento de Anna Calvi em qualquer canto do Mundo. Masterclass condensada em dois minutos de virtuosismo e contenção, com ela somos bafejados por algo que nos transcende, por muito que a ouçamos uma e outra vez, mas é uma mera introdução para o final apoteótico que foi "Blackout", letra de escuridão e presenças espectrais tornada luz e redenção nos tons garridos que melodicamente transporta. Um simples " goodbye and thank you" bastaram para nos fazer regressar à noite gélida que nos aguardava.
Anna Calvi é uma diva, o que nos tempos de hoje poderia parecer um excesso de linguagem. Felizmente não é o caso. Para além de uma imagem carismática, exsuda originalidade e talento nas suas composições e letras, algo que, nestes tempos em que um "twerking" na altura certa, um bom patrocínio e alguns impropérios na redes sociais garantem um lugar na lista de personalidades do ano, não é despiciendo. Pode parecer cliché, mas hoje ser fiel a si próprio e ter integridade(s) é quase suicídio artístico. É refrescante perceber que ainda há quem se esteja nas tintas para todo este ruído e seja abençoada com a capacidade de partilhar o seu "silêncio" mais íntimo. Essa é a essência de uma verdadeira Diva, hoje, ontem e amanhã.

Anna Calvi @ Casa da Música 16/12/2013:

Suzanne and I 
Eliza 
Suddenly 
Sing to Me 
Cry 
First We Kiss 
I'll Be Your Man 
Piece by Piece 
Carry Me Over 
Fire 
Desire 
Love Won't Be Leaving 

Encore:
Bleed Into Me 
Jezebel 
(Édith Piaf cover)

Encore 2:
Rider to the Sea 
Blackout 

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