25 fevereiro 2014

Bill Callahan na Casa da Música


Bill Callahan é um daqueles seres enigmáticos que raramente despontam numa indústria musical cada vez mais cristalizada e previsível, um náufrago voluntário que desiste da bússola e se agarra ao que tem e ao que encontra na sua ilha para sobreviver. Fascinante na sua persona pública é o facto de a sua Arte ser a única forma de o (tentar) conhecer, já que as suas entrevistas, entre o silencioso e o monossilábico, pouco contribuem para que formemos uma imagem concreta de si. Involuntariamente (ou talvez não), este recato contribuiu para a aura que hoje o rodeia, tornando-o numa espécie de último estertor de uma América musical verdadeira e íntegra, à imagem de outros que o antecederam, como Cash, Newbury ou Kristofferson, que o próprio celebra na gigante “America!”, hino nacional alternativo, irónico e mordaz, onde escalpeliza tudo o que o atrai e repele na federação que o viu nascer.
Bill cimentou a sua mundividência musical com um paciente trabalho de artesão, de tentativa e erro, aperfeiçoando durante décadas uma ideia base: a redução das letras ao mínimo para, em seguida, as abraçar sem as sufocar com uma melodia unificadora. Nos dias de hoje, o seu trabalho é puro despojamento, silêncio(s) e calma, espaço para as letras respirarem. Como próprio confessava há uns tempos: “There’s so much chaos in life, I think I make music to make things feel calm and sane, to define something, to bring some meaning into it—it’s a real peaceful thing to me.”
Os álbuns mais recentes (principalmente desde Woke on a Whaleheart (2007)), onde Bill Calllahan definitivamente se reinventou, refinaram essa fórmula ao nível do deleite, com o toque de Midas de três almas suficientemente empáticas para transformarem as suas ideias em realidade: Neil Hagerty (criador dos arranjos), John Congleton (produtor) e Brian Beattie (mistura e produção). A solidão ficou para trás, no estúdio, na vida e em palco.



Quando o ouvimos à nossa frente, a magia materializa-se. Sem que se desvaneça a música de palco, um qualquer vinil de música hispânica, o quarteto entra em palco, com a imagem de um pôr de sol no ecrã. “The Sing” entra de mansinho, pé ante pé, sem a distracção do violino. Mais um dia na vida de uma pequena vilória perdida é a imagem que nos ocorre e cedo nos damos conta da bela banda que acompanha o músico. “Javelin Unlanding” mantém-nos a bordo, navegando o Dream River (2013), com a guitarra de Matt Kinsey emulando na perfeição a libertadora flauta do original e as mãos despidas de Adam Jones fazendo as vezes baquetas sobre as peles da bateria. Depois do primeiro de repetidos agradecimentos ao longo da noite, seguimos o alinhamento do álbum de 2013 com “Small Plane”, beleza em forma de partilha dos perigos e prazeres da vida, momentos em que sentimos o verdadeiro peso de cada palavra sobre o silêncio solene e reverente de uma Sala Suggia lotada, como se cúmplice de um ritual secreto finalmente revelado.




Do elemento água, levantamos vôo em direcção à obra prima Sometimes I Wish We Were an Eagle (2009), com uma magnífica “Too Many Birds” que arranca o entusiasmo do público e o primeiro de muitos excelentes solos da guitarra do talentoso Kinsey. Seguimos o bando, que atravessa o Atlântico em direcção à “America!”, um dos momentos marcantes da noite, com Bill a tomar a harmónica e fazendo-a soar atonal, com a distorção da guitarra a reinar, à imagem do quadro cínico e ácido que nos apresenta de uma federação fundada em contradições profundas, enquanto por detrás de si vemos um quadro de um homem sem face que agarra uma carabina. Pelo meio, Kinsey tenta umas notas do tema principal d´O Padrinho, para depois Callahan regressar à harmónica, qual pioneiro bêbado e sem fôlego.





Depois de agradecer a generosidade portuense, que incluirá jantar e bebidas noite dentro, “One Fine Morning” relembra-nos ao que ali viemos, hino à evasão e insegurança nos dias do futuro, ilustrado por um esquisso de uma asa delta em carvão, com todos os seus detalhes. Os ritmos tornam-se a espaços arritmias, as letras de um rigor matemático percebem-se em cada sílaba, imensas, banhadas por novo solo que sobre elas paira recusando pousar. Uma tourada em câmara lenta invertida ilustra com uma deliciosa ironia “Ride My Arrow”, letra pulsante e urgente, sob o disfarce da calma das guitarras.
The real people went away...” e gritos involuntários, misto de alegria de ouvir “aquela” música e incentivo para que seja inesquecível, fazem-se ouvir. “Drover” é um dos hinos da carreira do americano, acordes abertos e uma letra inesquecível que só poderia ter saído daquela mente brilhante, com um sabor quase mitológico, evocativo dos fantasmas dos E.U.A., ranchos, gado, luta violenta por cada novo pedaço de terra, como se a história da conquista do oeste fosse reduzida a um haiku. “Spring” é primavera de destroços, pedaços de luz que a natureza já não é capaz de fazer chegar a uma alma em conflito interior, que encontra a verdadeira tranquilidade apenas nos braços da mulher amada. 



Os blues ainda são uma das pechas mais notadas da carreira de Callahan, mas também isso foi reparado, com uma cover fabulosa de um dos grandes criadores da música americana, Percy Mayfield, autor de hinos como “Hit the Road, Jack”. “Please Send Me Someone To Love” encaixa na perfeição no seu repertório, letra simultaneamente jocosa, irónica e espiritual, com uma melodia repleta de inflexões. Os tempos não rimam e a formalidade das letras é desconstruída pela já brincalhona harmónica. Todos os elementos da banda solam, para depois acompanharem o solo de Bill, finalmente sentado, guitarra ao colo, como se estivéssemos na sala de estar da sua casa no Texas depois de um jantar de amigos.
Com “Seagul” regressamos ao Dream River, jogo de aliterações e ritmos que nos conduz lentamente ao final de um concerto de sonho. “Dress Sexy At My Funeral” foi o olhar de esguelha para um já longínquo 2000, elegia sarcástica, carregada de memórias que guardamos no baú para momentos “especiais”, um dos grandes temas de uma carreira ímpar. "Winter Road" foi a primeira despedida depois uma longa e intensa jornada, simples e cinemática, carregando o simbolismo das verdades que apenas confessamos ao espelho, para que não passem por ingenuidade.
O encore não se fez esperar e trouxe uma pérola chamada “Rock Bottom Riser”, da sua anterior encarnação como Smog. A água omnipresente e e metáfora cantada de um garimpeiro que se afunda lentamente num rio lamacento, arrastado pela corrente inclemente e pela ilusão do brilho do ouro no seu fundo, para finalmente ser salvo pelos que ama, com o negrume dos acordes menores e a luz dos sentimentos maiores.




Bill Callahan demonstrou a quem quis ver, em cerca de duas horas de entrega inexcedível, que a generosidade na Arte não se mede pela quantidade de palavras utilizadas para a descrever ou descodificar, mas antes pela forma altruísta como, em cada obra, se deixa um pedaço de si. Sem jogos de luzes, metáforas rebuscadas ou pedaleiras repletas de efeitos especiais, resta apenas a palavra, o silêncio, a música e o sentimento. Basta isto para nos fazer felizes.
Obrigado Bill.

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