07 abril 2014

Cicero: a nova música brasileira veio ao Porto

 
O Brasil dos dias de hoje é o exemplo acabado de um País que aparenta começar a cumprir-se. Com grandes eventos internacionais a impulsionarem a economia, prosperidade para dar e vender, uma população cada vez mais consciente e inconformada com os seus males endémicos e uma cultura próspera e exemplar, o seu universo musical, naturalmente diverso, pelos vários Brasis que encontramos naquela terra abençoada, é imensamente próspero e criativo, com uma propensão natural para a reinvenção da tradição sambista, da MPB e da celebrada bossa nova, que se estende a áreas tão diversas como o pop, o rock ou mesmo o hiphop e a electrónica, com aclamação internacional e exportação facilitada pela qualidade indiscutível dos registos discográficos que se vão sucedendo a um ritmo impressionante. O séc. XXI tem sido particularmente generoso nesta área, com uma cena mais "indie" (perdoem a ausência de criatividade) a florescer paulatinamente. Escutamos ainda os ecos da voz e violão de Cartola, Jobim, Caetano ou Tom Zé, mas prevalecem agora as vozes tímidas e despudoradamente confessionais e pessoais, contrariando a viciante alegria e optimismo daquele povo com a melancolia dos dias naturalmente dolentes e reflexivos de quem ainda procura o seu lugar num Mundo enganadoramente "social" e tenta manter o pé numa maré quase insuportável de milhares de novidades diárias.
Cícero é um de muitos que vem mostrando ao Mundo esta nova vaga da música brasileira, encimada por timoneiros tão bem conhecidos em Portugal como Silva, Mallu Magalhães e o seu mais-que-tudo Marcelo Camelo (que dá uma mãozinha no álbum mais recente de Cícero) ou Rodrigo Amarante (ambos dos defuntos Los Hermanos, pioneiros e praticantes convictos dessa quebra com o mainstream brasileiro que a sua "Ana Júlia", para mal dos seus pecados, tão bem representou). Com os seus dois discos Sábado (2013) e Canções de Apartamento (2011) disponíveis para download no seu site oficial, o carioca, que hoje festeja 28 anos, é o exemplo paradigmático da forma bem mais simples e livre que esta geração tem de encarar a música, criativa e financeiramente. “Tento usar o som, as palavras e a música para entrar na minha própria sensibilidade, porque acredito que só assim vou conseguir atingir a sensibilidade do outro. Esse é o meu objectivo artístico”, confessa ao Sol em entrevista recente, revelando também o seu desconforto em lucrar com a venda directa dos seus discos, praticamente caseiros e por isso de baixo custo, preferindo manter o controlo criativo das suas composições e apostar nas apresentações ao vivo. Com a morrinha tão típica das noites da Baixa a inutilizar qualquer tentativa de manter um aspecto seco, o corpo pedia já o calor do Passos Manuel e uma cerveja fresquinha. À hora marcada, a pequena sala esgotou. As palavras no ar e os sorridentes silêncios anunciavam que Cícero Rosa Lins tinha fãs na plateia, certos de que não dariam o seu tempo por perdido.
Chegado ao palco, trazia consigo os companheiros de viagem transaltlântica e colaboradores próximos desde o 1º álbum Bruno Schulz (programação, teclas, acordeão) e Bruno Giorgi (baixo). Como bónus, os portugueses Alexandre Bernardo (guitarra) e o grande Fred Ferreira na bateria completavam o quinteto. Este último, impecável como guardião do som coeso de toda a actuação, tornou-se também, segundo o próprio Cícero, um guru espiritual para o Porto, descrevendo-o como um público que "presta atenção" e tem que se ir ganhando. A previsão foi certeira. O alinhamento trazia os 2 álbuns, com algumas adaptações sónicas essenciais ao formato concerto. O lo-fi ingénuo dos discos cedeu, dando maior espaço às composições e amplificando as intensidades, texturas e silêncios latentes nas melodias, para que a experiência fosse mais intensa.A entrada com pés de lã, com as primeiras músicas, ainda meio a medo, suaves na sua incompletude, trouxeram a importância dos beats minimais e repetitivos a toda a estrutura melódica, com a bateria discreta e voz rouca de Cícero a mostrar as letras em toda a sua poesia.

"Vagalumes Cegos" trouxe o primeiro despertar da banda. Em toada de trava-línguas infantil, canta-se a espuma dos dias e o que dela fica como importante e inalienável, as vitórias conquistadas na cumplicidade dos pequenos gestos. "Vem cuidar de mim/Vamos ver um filme/ter dois filhos/Ir ao parque/Discutir caetano/Planejar bobagens/E morrer de rir(...)Vamos esconder nosso cobertor/E vamos viver sem escolta ", letra que desemboca numa libertação de energia nas peles da bateria e na distorção das guitarras, que acordaram a sala do marasmo que ameaçadoramente se instalava.
style: normal;">"João e o pé de feijão" esconde na sua simplicidade em loop o pessimismo existencialista das letras e a variação de intensidades animou novamente o público e deixou-nos a melodia no ouvido. "Duas quadras" vai buscar o título e estrutura da letra à poesia. À herança do samba resgata o nome e o ritmo, fundindo-o com uma bossa versão 2014 e uma letra minimal que resulta na perfeição, como um cocktail bem mexido de alegria e melancolia, chamando Cartola para a festa com uma frase da sua emblemática "Preciso me encontrar".style: normal;">As aliterações e jogos gramaticais de "Ela e a lata" remetem-nos para o tropicalismo clássico de Gilberto Gil ou Caetano e o piano infantil de "Açucar e adoçante" mascara os destroços de uma relação que termina da pior maneira. Por esta altura, o público ainda não demonstrava o entusiasmo típico de quem está a gostar e Cícero não desarma. "Não consigo entender se estão gostando ou não. Podem bater palmas quando quiserem.", convida simpaticamente.style: normal;">"Porta, retrato" soou a "Weird Fishes" com umas caipirinhas bem servidas, desde a linha de baixo ao ritmo desconstruído na bateria. Wado, outro protagonista destacado da nova música brasileira que celebrávamos, viu a sua bela "Zelo" recordada na voz rouca de Cícero, colaborador no seu recente Vazio Tropical (2013).
 
A celebração colectiva que tardava chegou com a inevitável "Tempo de Pipa". Bem mais intensa ao vivo, inspirada e inspiradora, de melodia simples e contagiante, tem uma letra que involuntariamente cantamos como se nossa desde sempre. As palmas repetidas e a canção entoada bem alto trouxeram o calor do outro lado do grande Atlântico.
Honrado e surpreso por ver a sua música tão festejada, Cícero embalou numa bela 2ª parte, guardando os trunfos para o final. "Vou criar um lugar escondido/Para fazer meu recital/Quando o carnaval passar/Quando esse escarcéu passar". "Laiá Laiá" tem uma das frases mais belas do repertorio do brasileiro e ao mesmo tempo retrata o dificil processo criativo entre o buliço interminável da gigante "Cidade Maravilhosa". "Ponto Cego", com a exclamação tão querida a todos nós "É sexta feira, amor", é uma delícia de composição. Letra com versos curtos e ritmados, como se a língua dançasse entre as sílabas e uma melodia evocando tanto a canção francesa com o que de mais tribal e festivo o Brasil tem para nos oferecer, foi recriada eximiamente pelos músicos em palco e pelo público que correspondeu finalmente à sua entrega, rendido ao génio do pequeno grande carioca. Um grande single que, juntamente com "Tempo de Pipa", já devia há muito ter inundado esse éter cada vez mais standardizado. 
 
Depois de perguntar se nos importávamos que tocasse uma bossa, Cícero entrega-nos a bela "Pelo interfone", recriação e evocação irónica e doce do clássico "Dindi" de Jobim, usando com algum humor mascarado de romantismo os clichés desse estilo tão brasileiro, com direito a trompete simulado pelo baixista, para dar mais dramatismo ao momento. Pelo ar, na "Asa Delta", despedimo-nos pela 1ª vez da banda, que ainda teve espaço para uma mini jam antes da paragem pré-encore.style: normal;">De regresso ao palco pela derradeira vez, Fred, ao estilo Stomp, pede a ajuda do público para dar o ritmo da música que se seguia. Com "Frevo por acaso", o brasileiro oferece o seu ombro amigo àquelas angústias que nos apoquentam, aqui numa versão clássica de final de festa, em crescendo até ao apogeu da despedida. Terminado o concerto, de regresso ao frio húmido e pouco primaveril da noite portuense, contemplamos algumas certezas e percebemos o hype que rodeia este talento ainda em bruto. A segurança da sua actuação, associada à atenção com o público e um alinhamento bem estruturado (a que faltaram mais momentos intensos) são sinais inequívocos de que estamos perante alguém consciente do seu valor mas sem grandes pressas ou pretensões de sucesso massivo. As sementes naturalmente germinarão com trabalho árduo e com as pessoas certas por perto. Cícero Rosa Lins é um talento indiscutível, projectando serenidade e confiança no seu trabalho, algo que naturalmente se reflecte na sua actuação ao vivo sem grande esforço, já que a matéria prima é de qualidade superior.
O nosso desejo é que, depois dele, outros lhe sigam as pisadas e tragam a sua música às salas portuguesas.
Wado, Bruno Souto, Apanhador Só, Nevilton e tantos outros, fica a nossa mensagem para todos vós: somos todos ouvidos.     
Cícero @ Passos Manuel
1 – Fuga nº3 da Rua Nestor
2 – Capim Limão
3 – Vagalumes Cegos
4 – Fuga nº4
5 – João e o pé de feijão
6 – Duas quadras
7 – Ela e a lata
8 – Açucar ou adoçante?
9 – Porta, retrato
10 – Zelo
11 – Tempo de Pipa
12 – Pra animar o bar
13 – Laiá Laiá
14 – Ponto Cego
15 – Pelo Interfone
16 – Asa delta
Encore
17 Frevo por acaso

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