Independentemente do que hoje suceda nos quatro palcos do
Parque da Cidade, o 2º dia do NOS Primavera Sound 2016 gravou certamente na
memória de muitos milhares a explicação para a genuinidade que ainda conserva.
Por quanto tempo resistirà à massificação de que os seus
congéneres padecem? Cabe à organização e a nós, melómanos e fãs deste ninho de
beleza natural e musical, zelar para que este carácter tão único perdure por
muitos e bons anos.
Pintado de contrastes e momentos marcantes, o dia 2 da
versão portuguesa do Primavera Sound foi daqueles que constará na galeria dos
inesquecíveis.
Não são muitos os festivais que podem gabar-se de terem,
no mesmo dia, dois dos grandes músicos das últimas décadas: Polly Jean Harvey e Brian Wilson. E com eles, uma catrefada
de emoções que cada um traz consigo ao entrar no Parque, entre a expectativa de
ver a “sua” música finalmente tocada e as memórias tornadas essência dessas e
de outras melodias.
O colorido psicadélico e festivo dos Animal Collective e
o deslumbramento dos efeitos especiais durente o concerto dos Sigur Rós,
cederam lugar ao seu negativo musical e imagético, com PJ Harvey e Beach House
a darem a primazia ao negrume e incontestada prioridade à música e letra de
cada composição, sem truques nem aditivos.
Pura Arte, dirão alguns. Uma seca e uma desilusão dirão
outros, à esperando mais electricidade. Também foi para isto que se fez o 25 de
Abril, como diz o povão.
O concerto do dia foi um ceremonial negro e hipnótico
encenado pela britânica. Com ela, uma espécie de selecção do resto do Mundo musical
(obrigado José Reis), com ícones como Mick Harvey, John Parish, James Johnston
e Terry Edwards, tornaram o concerto numa masterclass musical, com solos e
devaneios para todos os gostos.
"The Wheel"
Trajes pretos da cabeça aos pés, iluminação reduzida ao
mínimo essencial (com predominância para as luzes alvas, em contraste com a
escuridão circundante) e um cenário a simular um muro maciço de granito. Foi
neste parco e simbólico contexto cénico que
o álbum Hope Six Demolition Project (Island, 2016) foi tocado quase na
íntegra, com todo o seu dramatismo.
A dimensão política, contestatária e, simultaneamente, elegíaca
e espiritual que atravessa o novo registo discográfico, é evidente e resulta na
perfeição ao vivo. A interacção com o público deriva precisamente do desempenho
da banda, quase matematicamente exacto na execução do alinhamento, como se de
um ritual milenar e austero se tratasse. A haver cenário onde a frase certa ou
as sempre tão desejadas palminhas seriam perfeitamente acessórias, este
concerto seria o caso paradigmático.
A predominância da percussão, com duas baterias e com
todos os músicos a tocarem alternadamente um ou outro tambor, contribuíu ainda
mais para este pendor ritualístico.
"Let England Shake"
“Chain of Keys”
abriu a cerimónia. A banda entrou em fila indiana, como uma marching band de Nova Orleães, ritmo marcial. PJ vinha no sax, imperturbável e
poderosa como sempre.
A guerra, o pó, a triste condição da mulher em pleno séc.
XXI, está tudo lá.
O inconfundível riff
de “Ministry of Defence” trouxe uma das melhores faixas do novo álbum, com
todos os músicos entoando a letra em uníssono e um solo de sax de tirar o
fólego de Terry Edwards.
E por aí fomos, sempre com Hope Six, até “Let
England Shake” deixar o público em delírio, com a sua introdução ao piano. As
incursões ao resto da discografia de Polly Jean foram cirúrgicas e incluíram “The
words that maketh murder”, “The glorious land”, “The wheel” e “To bring you my
love” e a espectacular versão de “50ft Queenie”, um vislumbre da festividade,
acidez e ironia da sua música.
Aos poucos, o ritmo serenou novamente e quando o muro
granítico por detrás da banda começou a descer, todos sabiam que o final se
aproximava e não haveria direito a encores.
O ciclo fechou-se, com a banda, novamente reunida na boca
de cena, entoando a capella o velho
espiritual negro “Wade in the Water”, uma réstea de esperança na Primavera de
destroços que partlhou magistralmente com o público português.
Bryan Wilson,
embora já com as suas provectas sete décadas e picos, fez-nos a vontade e
deixou-nos ouvir o seu Pet Sounds, que festejou
recentemente 50 anos.
Depois de algumas faixas introdutórias, velhos êxitos
como “Fun, Fun, Fun” ou “I get around”, finalmente chegou a esperada recriação
do álbum histórico e todos rejubilaram.
Música como esta faz parte da nossa herança genética,
pelo que, mesmo perante a incapacidade de identificar uma qualquer canção,
todos a sabem de forma quase instintiva, como no caso de “Sloop John B” ou “God Only Knows”, e a dançam e cantam
como se de um milagre se tratasse.
"God Only Knows"
Com outro fundadores dos Beach Boys em palco (Al
Jardine), e um conjunto excelente de músicos e vocalistas, o álbum foi
reproduzido com fidelidade, o que nem sempre resultou em termos de espectáculo,
visto tratar-se de um conjunto de canções bastante introspectivo e melancólico,
faltando talvez um extra de intensidade instrumental para que o momento fosse
perfeito. Mas esse instantâneo, quase surreal, de ter diante de nós um pedaço
de história, já ninguém nos tira. Obrigado Brian.
Na área do rock e seus derivados, destacaram-se os sempre
fantásticos Dinosaur Jr. com o deus
dos riffs J Mascis a espalhar
virtuosismo em cada tema, e os seus companheiros de viagem Lou Barlow e Murph a
garantirem o suporte vital para que Mascis pudesse voar. Tivemos direito a uma
cover incrível de “Just Like Heaven” dos The Cure e depois demos um salto ao
palco Super Bock, onde as Savages
iniciavam o seu concerto com “I am Here”, retomando o namoro que tÊm com
Portugal desde a sua génese.
"Just Like Heaven" (cover The Cure)
Um concerto enérgico e sem concessões, com a andrógina Jehnny
Beth a liderar público e banda, com invectivas constantes e interacção
certeira, que desembocou numa dedicatória sentida ao público português, via
“Fuckers”, que revelou ter sido concebida três anos antes, precisamente no
Parque da Cidade, como uma homenagem e uma recordação ao público que sempre as
apoiou.
Os Mudhoney,
que muitos só conhecem via covers pelos
Nirvana, no célebre e póstumo Unplugged
in New York, mostraram que o grunge sempre foi bem além do trio liderado
por Cobain. Com uma actuação viva e directa, sem tangas nem palavras a mais,
“Touch Me I´m Sick” bastava para justificar a sua presença por terras
tripeiras.
"Touch Me I´m Sick"
Mas o palco principal fechou com os Beach House, retomando o negrume deixado por PJ Harvey pouco antes,
mas de modo mais inesperadamente acutilante.
Poucos contariam encontrar um alinhamento tão pouco
cor-de-rosa como o dos americanos nas primeiras horas de hoje. Com a ajuda de
uma bateria bem alta e de um segundo teclado, complementando o de Victoria
Legrand, o som esteve frequentemente na margem entre o audível e o puro feedback, deixando para o calor do lar e
o anonimato dos mp3 o som mais limpo, monótono e monocórdico dos registos de
estúdio, o que me pareceu uma excelente opção.
"Take Care"
Com um casaco negro de capuz a cobrir-lhe os longos
cabelos que, de quando em vez, soltava para um saudável agitar de cabeça,
Victoria foi soturna e festiva, mas sempre parca em palavras e doce nas
vocalizações. O receio de um espectáculo curto dissolveu-se quando anunciou que
tocariam um alinhamento completo a pedido da organização e em boa hora o
fizeram, porque valeu cada segundo.
Fã de algum do seu trabalho, fui arrebatado pela
intensidade inaudita que composições como "Silver Soul", “Space Song”
ou “Take Care” atingiram, com o ritmo extremamente bem marcado da
bateria a substituir a tradicional caixa de ritmos, o que fez toda a diferença,
para um concerto com uma assistência de largos milhares que, bem depois da
1h30, ainda enchiam o relvado.
A despedida sentida com um “keep being sensitive.” e
“you´re beautiful” pareceu, mais que sincera, um sinal de profunda comunhão,
porque por aqui, a música vive-se com a intensidade dos momentos inesquecíveis
e o público português tem uma fama a manter.
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